São Paulo, terça, 25 de novembro de 1997.



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A segurança pública e o dono do supermercado

MARILENE FELINTO
da Equipe de Articulistas

O sonho da classe média é ser dona de uma rede de supermercados. A tentativa de assalto sofrida em São Paulo, semana passada, pelo dono da rede Pão de Açúcar é tudo o que a classe média deseja.
O sonho: a pessoa está indo desprevenida à direção de seu jipe Ranger Rover -ainda não blindado porque é novo, não deu tempo- por uma rua de bairro chique da cidade. De repente, no semáforo fechado, um vendedor de flores saca um revólver escondido sob o buquê e encosta em sua janela. Exige seu Rolex de US$ 5.000.
Alvo errado. O ladrão azarado não imaginaria que abordava justamente o filho do dono do supermercado. Gente grande, gente poderosa. Então, em segundos, surgem os três seguranças particulares do rapaz, que o seguiam, e metralham com 11 tiros o ladrão.
Não é o máximo? Foi um tiroteio digno do mundo sem lei dos filmes de faroeste. O ladrão, mesmo ferido, ainda atingiu dois.
Mas o mocinho, um policial militar que fazia (irregularmente) "hora extra" para o dono do supermercado, usando inclusive uma arma da PM, está sendo acusado de ter assassinado com mais três tiros o bandido já caído, de pernas abertas e olhos esbugalhados.
Não é o máximo? Se a segurança pública não existe, se a polícia é uma ficção, uma inoperância, uma corrupção, uma irresponsabilidade só, pouco importa -contrata-se segurança particular (incluindo os valentões mal pagos da PM), a pessoa se defende, manda matar antes que a matem.
Ser dona de uma rede de supermercados para morrer menos -esse é o sonho da classe média entretida com a novidade de sua TV a cabo, com seu Twingo importado (por enquanto, pois almeja mesmo um BMW, um Ranger Rover blindado), com fazer compras de Natal na megastore.
A classe média é a única que poderia sustentar uma reviravolta de coisas, uma revoluçãozinha de fato que desse ao cidadão o que o cidadão tem direito: segurança pública, serviços públicos decentes em troca da escandalosa quantia de impostos que paga.
A peculiaridade da Revolução Francesa, segundo explica Hobsbawm, é que parte da classe média liberal (os chamados jacobinos, revolucionários radicais) estava pronta a continuar revolucionária até o, e mesmo além do, limiar da revolução antiburguesa.
Aqui, a classe média só sai da poltrona quando um de seus filhinhos bem alimentados leva um tiro no meio da cara em assalto que consideravam, até então, improvável à sua casta enobrecida pelo carro importado. Aí ensaiam organizarem-se, montarem movimentos para ladrão ver.
São os "Reage São Paulo", os movimentos de "desarmamento pela paz", essas bobagens que não comovem ninguém, não mexem na estrutura das coisas, não alteram o inferno da vida dos bandidos dentro e fora das prisões. Não tiram das ruas os meninos pequenos, os futuros ladrões e assassinos.
Classe média tapada, conformista, conservadora. É isso. Cada classe média tem a polícia que merece, o aumento de Imposto de Renda que merece.

E-mail mfelinto@uol.com.br



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