São Paulo, domingo, 26 de março de 2006

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ENTRE DOIS MUNDOS

Junior, do grupo AfroReggae, faz a ponte entre grandes empresários e as comunidades das favelas

PIB paulista sobe morro para "viver" pobreza

LAURA CAPRIGLIONE
DA REPORTAGEM LOCAL

Ronaldo Koloszuk, 28, presidente do Comitê de Jovens Empreendedores da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo; André, 25, filho de Paulo Skaf, presidente da Fiesp; Wilson de Faria, 37, diretor de planejamento tributário do Citibank; e Pedro Navio, 25, gerente nacional de marketing da Redbull, são ricos.
Recentemente, os jovens deram para gostar de ir também para os morros do Rio de Janeiro, onde se escondem traficantes de drogas des temíveis facções criminosas. Foram atrás de José de Oliveira Junior, o Junior, 37.
Coordenador do Grupo Cultural AfroReggae, Junior -que nasceu em Ramos, zona do meretrício da cidade-, trata com familiaridade tanto traficantes quanto os herdeiros do PIB paulista. "Meu objetivo é ser uma ponte entre pessoas que nem se cumprimentariam", diz. Há uma semana, Junior relançou seu livro "Da Favela para o Mundo", pela Ediouro. A ponte está em obras. De ampliação.
 

Folha - O que faz o coordenador do AfroReggae andando com o delfim da Fiesp André Skaf?
José Junior -
"Você já foi a uma favela na tua vida?", eu perguntei ao André em outubro do ano passado. Ele respondeu: "Nunca". Na semana seguinte, levei-o para conhecer Vigário Geral, Cantagalo e Cidade de Deus. Tudo em um único dia. Acabou que foi um dia muito especial. Desde agosto eu vinha conversando com o chefe do tráfico de Vigário Geral, um cara de 35 anos que queria largar a atividade. Sempre que eu ia a Vigário, eu conversava com esse chefe e, por coincidência, no dia em que ele decidiu sair do tráfico, o André estava lá. Isso deixou-o muito impressionado.

Folha - Ele foi com segurança?
Junior -
Olha, o Rio de Janeiro não é assim. Se você for com uma BMW a uma favela do Rio de Janeiro e deixar sua BMW aberta, com mochila, som ligado, ninguém mexe. Faz isso aqui no Capão Redondo. Não dá, não é?

Folha - Por que é assim?
Junior -
Vigário Geral, por exemplo, é uma favela em que o Caetano [Veloso] sempre está, o [diretor Pedro] Almodóvar já foi, [Gilberto] Gil já foi. É uma favela privilegiada pela constância com que pessoas importantes estão lá.

Folha - Para que serve esse turismo social?
Junior -
A gente não promove "turismo social". A gente constrói pontes entre as classes para mostrar as coisas boas que existem em lugares dos quais só se esperam coisas ruins. O André ia passar o último réveillon no Rio. Eu levei-o para a carceragem da Polinter, cheia de neguinho de alta periculosidade -traficantes, seqüestradores, assassinos. Ficamos todos juntos, os bandidos e nós: não tinha grade. Ele ficou três horas lá dentro. Sem segurança.

Folha - Como o AfroReggae atua na mediação de conflitos?
Junior -
Vou dar um exemplo. No início de 2004, eu assisti a um espetáculo chamado "Antônio e Cleópatra" e tive a idéia de levá-lo para a favela, com os atores globais, o mesmo cenário, tudo. Mas não servia qualquer favela. Tinha de ser Vigário [Geral] e [Parada de] Lucas, que têm a guerra mais antiga do tráfico do Brasil [desde 1982]. O espetáculo ia acontecer na fronteira entre as duas comunidades, onde um cachorro, se atravessar pro outro lado, nego mata. Precisava haver uma trégua e eu fui falar disso com o chefe do tráfico em Lucas. Outro cara do AfroReggae foi falar com o chefe de Vigário. No meio da conversa, toca o meu celular. "Ô irmão, Vigário vai atacar Lucas agora."

Folha - Acabou o espetáculo?
Junior -
Nada disso. "Quem é que está do teu lado ameaçando?", eu perguntei. "Fulano." "Então põe ele aí na linha." Alô. "Vem aqui, "Fulano", você vai atacar aqui por quê?" Ele falou de uns problemas com o pessoal de Lucas. Eu respondi: "Olha, você fala com o "Sicrano" que está aqui do meu lado". Daqui a pouco o chefe do meu lado falou: "Vamos todo mundo para a fronteira". Fomos. Dezenas de homens armados de um lado, dezenas do outro. No meio, uma escola, o Ciep Mestre Cartola, que logo suspendeu as aulas, e um posto policial. Eu falei: "Vou atravessar essa parada". Comecei a atravessar e, para me assustar, os caras botaram o dedo no gatilho e plá, plá, plá. Cheguei do outro lado e conversei com o chefe. O cara me perguntou: "Você quer a paz? Então eu vou do outro lado contigo". Largou as armas, botou a vida na minha mão e foi. Chegou até o meio e parou. Aí, o cara do outro lado fez a mesma coisa: largou a arma e foi até o meio. Eles deram-se as mãos. Um disse que respeitava o outro, que retribuiu. "Depois, a gente resolve", foi a senha para o que seria um dia de trégua. Foram 18.

Folha - Você usa drogas?
Junior -
Eu nunca fumei, nunca bebi um copo de cerveja, nunca cheirei. Nada. Mas aconteceu uma coisa que me deixou muito "bolado". Teve uma passeata quando o Tim Lopes morreu [o jornalista foi assassinado em 2002]. Um monte de gente foi de camiseta preta, sinal de luto. Acabou a manifestação e o pessoal, ainda com a camiseta preta, foi para os morros comprar cocaína. Ali ficou claro para mim que as pessoas que cheiravam aquele pó ajudaram a matar o Tim Lopes.

Folha - O que mudou na economia do tráfico?
Junior -
O tráfico não tem mais o caráter assistencialista que já teve. Antes, o traficante era o morador da favela. Hoje, é o invasor que se apoderou do morro ou o "executivo". O cara não tem vínculo com aquela região. Se não está funcionando para tocar o negócio numa favela? A facção manda outro, mesmo sem vínculo com a comunidade. Antes, os traficantes não viam as comunidades como seu público-alvo. Agora, vêem. É um salve-se-quem-puder.


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