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Invasões bárbaras
A arte de rua ganha status e abre salas e galerias para as obras de ex-office-boys, metalúrgicos e motoboys
NINA LEMOS
COLUNISTA DA FOLHA
Zezão, 34, coleciona algumas
passagens pela polícia, a última
em 2004. Pego em flagrante quando grafitava um muro no bairro
do Pacaembu, ficou preso por oito horas, até que seu advogado
negociasse a soltura.
Titi Freak, 31, foi enquadrado
quando desenhava "umas estrelas" na rua e ficou nas garras da lei
por três horas.
Boleta, 28, então, foi freguês
com direito a tratamento especial;
uma vez, teve o corpo todo pintado com sua própria tinta; em outra, o carão policial incluiu uma
"brincadeira" de roleta russa.
A punição podia variar, mas a
lei era -e é- a mesma: pichação
e grafite são considerados crimes
no Brasil. Ambos se enquadram
na categoria de "danos patrimoniais", sujeitos a pena entre três
meses e um ano, mais multa. Mas
o tempo passa e, como sempre, a
transgressão acaba sendo absorvida pelos bacanas. O vandalismo
de outrora agora é chique e, em
vez de celas, seus autores freqüentam salas e salões.
As galerias Fortes Vilaça e Choque Cultural trocaram seus papéis
em mostras simultâneas. Na Vilaça, uma das mais sofisticadas de
São Paulo, exibem-se obras exclusivas de oito artistas de rua. Na
Choque Cultural, especializada
em arte de rua, é a vez de stickers e
lambe-lambes criados por nomes
consagrados como Vik Muniz,
Beatriz Milhazes e Adriana Varejão. Zezão e Titi estão na Fortes
Vilaça, dão palestras em universidades, são convidados para grafitar espaços urbanos, restaurantes
e casas de modernos. E cobram:
uma parede pintada por um grafiteiro top de linha custa, no mínimo, R$ 2.000.
Sinal dos novos tempos: no batente desde os 13 anos, o ex-office
boy, vendedor e motoboy (por
quatro anos) Zezão já consegue
viver só da grafitagem; mora com
a namorada em um apartamento
da zona norte e não precisa mais
fazer bicos para sobreviver."Faço
muito trabalho com decoração.
Não fiquei rico, tem mês em que
ganho muito, em outros, menos,
mas dá para viver só disso."
Decoração é como os artistas de
rua chamam os trabalhos feitos
por encomenda em casas e estabelecimentos comerciais, sejam
eles grafite, pichação, lambe-lambe ou peça. Todos festejados por
descolados em geral, porque aqui,
mais do que nunca, o meio é a
mensagem. Ou seja: arte de rua =
modernidade.
"O que acontece na rua começa
a ser divulgado pelos formadores
de opinião, e quem é de classe média e quer se diferenciar pega elementos da rua considerados
transgressores, como o grafite,
mas tudo dentro de casa, de uma
maneira segura", explica o antropólogo Alexandre Barbosa Pereira, da USP, que prepara sua tese
de doutorado sobre pichação.
Um desses formadores de opinião é o arquiteto Marcelo Rosenbaum: "Coloquei grafite em um
camarote no Rio. Em certos lugares, casas, prédios ou bares, fica
muito mais interessante."
"Todo mundo que vem aqui em
casa ama, é superdiferente. Acho
lindo e chique", diz a diretora de
marketing da Tritton, Manoela
Mendes, 31, que tem um grafite de
Zezão no teto da cozinha.
"Tenho o maior orgulho dessa
parede, todo mundo fica deslumbrado. E é mais legal do que ter
uma obra pendurada na parede",
acredita a assessora Heloísa Reinert, 40, que tem uma obra de
Maurício Zuffo Kulhman, o MZK,
37, dentro de casa.
Para os grafiteiros, Heloísa é
uma espécie de cliente ideal,
aquela que não confunde "decoração" com decoração. "Tem
muita gente que procura o grafite
porque é moda, sem saber o que é,
e pede que eu faça pinturas figurativas, do tipo reproduzir uma foto. Isso é pintura. Não é grafite",
reclama MZK.
Equívocos à parte, o clima entre
os artistas de rua é de euforia.
"Nem nos meus sonhos mais distantes poderia imaginar que o
meu trabalho fosse ser aceito da
maneira que é hoje", diz Paulo
Cesar Silva, 34, o "internacional"
Speto. No ano passado, Speto grafitou quatro quartos de um hotel
em Copenhague, Dinamarca. Ele
não revela quanto ganhou ou ganha. "Mas é o suficiente para ficar
mal acostumado", brinca.
Neste ano, pela segunda vez,
Speto participa da campanha publicitária de uma marca de cerveja: faz ilustrações nos anúncios divulgados no mercado europeu e
atua como uma espécie de representante brasileiro da marca no
mercado mundial.
Zezão é outro que se surpreende. Além da exposição na Fortes
Vilaça, ele se prepara para expor
em Paris, como parte do Projeto
Reimpressões, já exibido na Galeria Funarte, em São Paulo. De vez
em quando é convidado para falar
sobre arte de rua e intervenção urbana na ECA (Escola de Comunicações e Artes da USP) e na Universidade Metodista. "Larguei a
escola na sétima série e nunca
imaginei que uma universidade
fosse me chamar para dar palestra." Diz, porém, que não abandonou as ruas. "É o verdadeiro lugar
do grafite. Toda semana, quando
tenho uma folga, vou grafitar na
rua. Podemos trazer para dentro
de galerias e casas, mas na rua é
diferente, lá você tem total liberdade. Fico tenso em trabalhos como esse da Fortes Vilaça. Estou
em uma galeria importante, não
posso sujar o chão."
Vício
Como tudo que faz sucesso, as
divergências no meio dos arteiros
já começam a aparecer, gerando
puristas, renegados e cooptados.
"Tem gente que hoje nega o passado. Eu continuo me considerando um pichador, fiz e continuo fazendo", diz Daniel Medeiros, o Boleta, 28.
Ex-office boy, entregador de
pão e metalúrgico, Boleta começou a pichar a palavra "vício" pela
cidade em 1990, e não parou mais.
A partir de 2000, passou a ser convidado para pichar lojas, participar de trabalhos de publicidade e
abandonou a fábrica. Há um ano,
abriu sua própria galeria de arte,
com três amigos, a Grafiteria, na
Vila Madalena. Faz trabalhos para
empresas como Nike, Puma e Coca-Cola e "decora" paredes domésticas. Mas o "vício" continua.
"A pichação é a essência do meu
trabalho. Não penso em parar."
Os resistentes que se cuidem.
Mesmo o menos palatável picho
-que a moçada grafa pixo- começa a ser assimilado. "Acho que
não é muita gente que gosta, e não
sei se vai virar coisa de galeria de
arte", ressalva Boleta. Pode ser
que não, mas ele já foi convocado
para pintar de estúdio de gravação a mobiliário.
Boleta é organizador do livro
"Ttsssss.... A Grande Arte da Pichação em São Paulo", lançado há
dois meses pela editora do Bispo,
da artista plástica Pinky Wainer,
dona de uma loja com o mesmo
nome. "Acho que o grafite é mais
facilmente absorvido. A pichação,
não", diz Pinky, que tem um quadro com a palavra "vício", de Boleta, na cozinha de casa.
A loja do Bispo, assim como a
Grafiteria e a Choque Cultural são
lugares onde qualquer um pode
comprar um kit do tipo "vandalize você mesmo", com cartazes de
lambe-lambe produzidos por coletivos paulistanos, para o vândalo de fim de semana colar onde
quiser. No lançamento do livro,
no galpão K, os pichadores convidados decidiram pichar todas as
paredes do lugar -sem autorização, claro. "O que aconteceu foi
maravilhoso, uma manifestação
artística de verdade. Um deles
ainda veio me perguntar se podia
pichar. Respondi que essas coisas
não se pedem. Picho autorizado
não tem graça", acredita Pinky.
Não é o que pensa o pessoal que
está até pagando pela empreitada.
Serviço
Choque Cultural na Fortes Vilaça. Galeria Fortes Vilaça (r. Fradique Coutinho,
1.500). De terça a sexta, das 10h às 19h;
sábado, das 10 às 17h. Até 20/4.
Fortes Vilaça na Choque Cultural. Galeria Choque Cultural (r. João Moura,
997). De segunda a sábado, das 12 às
19h.
Agradecimento: hotel Emiliano
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