São Paulo, domingo, 26 de março de 2006

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Invasões bárbaras

A arte de rua ganha status e abre salas e galerias para as obras de ex-office-boys, metalúrgicos e motoboys

NINA LEMOS
COLUNISTA DA FOLHA

Zezão, 34, coleciona algumas passagens pela polícia, a última em 2004. Pego em flagrante quando grafitava um muro no bairro do Pacaembu, ficou preso por oito horas, até que seu advogado negociasse a soltura.
Titi Freak, 31, foi enquadrado quando desenhava "umas estrelas" na rua e ficou nas garras da lei por três horas.
Boleta, 28, então, foi freguês com direito a tratamento especial; uma vez, teve o corpo todo pintado com sua própria tinta; em outra, o carão policial incluiu uma "brincadeira" de roleta russa.
A punição podia variar, mas a lei era -e é- a mesma: pichação e grafite são considerados crimes no Brasil. Ambos se enquadram na categoria de "danos patrimoniais", sujeitos a pena entre três meses e um ano, mais multa. Mas o tempo passa e, como sempre, a transgressão acaba sendo absorvida pelos bacanas. O vandalismo de outrora agora é chique e, em vez de celas, seus autores freqüentam salas e salões.
As galerias Fortes Vilaça e Choque Cultural trocaram seus papéis em mostras simultâneas. Na Vilaça, uma das mais sofisticadas de São Paulo, exibem-se obras exclusivas de oito artistas de rua. Na Choque Cultural, especializada em arte de rua, é a vez de stickers e lambe-lambes criados por nomes consagrados como Vik Muniz, Beatriz Milhazes e Adriana Varejão. Zezão e Titi estão na Fortes Vilaça, dão palestras em universidades, são convidados para grafitar espaços urbanos, restaurantes e casas de modernos. E cobram: uma parede pintada por um grafiteiro top de linha custa, no mínimo, R$ 2.000.
Sinal dos novos tempos: no batente desde os 13 anos, o ex-office boy, vendedor e motoboy (por quatro anos) Zezão já consegue viver só da grafitagem; mora com a namorada em um apartamento da zona norte e não precisa mais fazer bicos para sobreviver."Faço muito trabalho com decoração. Não fiquei rico, tem mês em que ganho muito, em outros, menos, mas dá para viver só disso."
Decoração é como os artistas de rua chamam os trabalhos feitos por encomenda em casas e estabelecimentos comerciais, sejam eles grafite, pichação, lambe-lambe ou peça. Todos festejados por descolados em geral, porque aqui, mais do que nunca, o meio é a mensagem. Ou seja: arte de rua = modernidade.
"O que acontece na rua começa a ser divulgado pelos formadores de opinião, e quem é de classe média e quer se diferenciar pega elementos da rua considerados transgressores, como o grafite, mas tudo dentro de casa, de uma maneira segura", explica o antropólogo Alexandre Barbosa Pereira, da USP, que prepara sua tese de doutorado sobre pichação.
Um desses formadores de opinião é o arquiteto Marcelo Rosenbaum: "Coloquei grafite em um camarote no Rio. Em certos lugares, casas, prédios ou bares, fica muito mais interessante."
"Todo mundo que vem aqui em casa ama, é superdiferente. Acho lindo e chique", diz a diretora de marketing da Tritton, Manoela Mendes, 31, que tem um grafite de Zezão no teto da cozinha.
"Tenho o maior orgulho dessa parede, todo mundo fica deslumbrado. E é mais legal do que ter uma obra pendurada na parede", acredita a assessora Heloísa Reinert, 40, que tem uma obra de Maurício Zuffo Kulhman, o MZK, 37, dentro de casa.
Para os grafiteiros, Heloísa é uma espécie de cliente ideal, aquela que não confunde "decoração" com decoração. "Tem muita gente que procura o grafite porque é moda, sem saber o que é, e pede que eu faça pinturas figurativas, do tipo reproduzir uma foto. Isso é pintura. Não é grafite", reclama MZK.
Equívocos à parte, o clima entre os artistas de rua é de euforia. "Nem nos meus sonhos mais distantes poderia imaginar que o meu trabalho fosse ser aceito da maneira que é hoje", diz Paulo Cesar Silva, 34, o "internacional" Speto. No ano passado, Speto grafitou quatro quartos de um hotel em Copenhague, Dinamarca. Ele não revela quanto ganhou ou ganha. "Mas é o suficiente para ficar mal acostumado", brinca.
Neste ano, pela segunda vez, Speto participa da campanha publicitária de uma marca de cerveja: faz ilustrações nos anúncios divulgados no mercado europeu e atua como uma espécie de representante brasileiro da marca no mercado mundial.
Zezão é outro que se surpreende. Além da exposição na Fortes Vilaça, ele se prepara para expor em Paris, como parte do Projeto Reimpressões, já exibido na Galeria Funarte, em São Paulo. De vez em quando é convidado para falar sobre arte de rua e intervenção urbana na ECA (Escola de Comunicações e Artes da USP) e na Universidade Metodista. "Larguei a escola na sétima série e nunca imaginei que uma universidade fosse me chamar para dar palestra." Diz, porém, que não abandonou as ruas. "É o verdadeiro lugar do grafite. Toda semana, quando tenho uma folga, vou grafitar na rua. Podemos trazer para dentro de galerias e casas, mas na rua é diferente, lá você tem total liberdade. Fico tenso em trabalhos como esse da Fortes Vilaça. Estou em uma galeria importante, não posso sujar o chão."

Vício
Como tudo que faz sucesso, as divergências no meio dos arteiros já começam a aparecer, gerando puristas, renegados e cooptados. "Tem gente que hoje nega o passado. Eu continuo me considerando um pichador, fiz e continuo fazendo", diz Daniel Medeiros, o Boleta, 28.
Ex-office boy, entregador de pão e metalúrgico, Boleta começou a pichar a palavra "vício" pela cidade em 1990, e não parou mais. A partir de 2000, passou a ser convidado para pichar lojas, participar de trabalhos de publicidade e abandonou a fábrica. Há um ano, abriu sua própria galeria de arte, com três amigos, a Grafiteria, na Vila Madalena. Faz trabalhos para empresas como Nike, Puma e Coca-Cola e "decora" paredes domésticas. Mas o "vício" continua. "A pichação é a essência do meu trabalho. Não penso em parar."
Os resistentes que se cuidem. Mesmo o menos palatável picho -que a moçada grafa pixo- começa a ser assimilado. "Acho que não é muita gente que gosta, e não sei se vai virar coisa de galeria de arte", ressalva Boleta. Pode ser que não, mas ele já foi convocado para pintar de estúdio de gravação a mobiliário.
Boleta é organizador do livro "Ttsssss.... A Grande Arte da Pichação em São Paulo", lançado há dois meses pela editora do Bispo, da artista plástica Pinky Wainer, dona de uma loja com o mesmo nome. "Acho que o grafite é mais facilmente absorvido. A pichação, não", diz Pinky, que tem um quadro com a palavra "vício", de Boleta, na cozinha de casa.
A loja do Bispo, assim como a Grafiteria e a Choque Cultural são lugares onde qualquer um pode comprar um kit do tipo "vandalize você mesmo", com cartazes de lambe-lambe produzidos por coletivos paulistanos, para o vândalo de fim de semana colar onde quiser. No lançamento do livro, no galpão K, os pichadores convidados decidiram pichar todas as paredes do lugar -sem autorização, claro. "O que aconteceu foi maravilhoso, uma manifestação artística de verdade. Um deles ainda veio me perguntar se podia pichar. Respondi que essas coisas não se pedem. Picho autorizado não tem graça", acredita Pinky.
Não é o que pensa o pessoal que está até pagando pela empreitada.


Serviço
Choque Cultural na Fortes Vilaça. Galeria Fortes Vilaça (r. Fradique Coutinho, 1.500). De terça a sexta, das 10h às 19h; sábado, das 10 às 17h. Até 20/4.
Fortes Vilaça na Choque Cultural. Galeria Choque Cultural (r. João Moura, 997). De segunda a sábado, das 12 às 19h.
Agradecimento: hotel Emiliano



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