São Paulo, segunda-feira, 26 de abril de 2004

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

MOACYR SCLIAR

Sono invencível, sonho impossível

1. Sono invencível
Artes plásticas: mostra de vídeos no Paço das Artes faz público dormir. Sentada num pufe branco, estudante dormia diante da projeção. Ilustrada, 18 de abril de 2004

Durante meses Nuno aguardara com ansiedade a mostra. Tinha certeza de que a projeção de seu vídeo artístico, intitulado "Alerta", representaria uma consagração. Animado por tal esperança, foi várias vezes ao Paço das Artes. Para sua amarga decepção, sempre havia alguém, sentado ou deitado no pufe, dormindo a sono solto diante do écran. É o fim da minha carreira, pensava, amargo. Por isso, foi com surpresa que recebeu o telefonema de um empresário que se dizia entusiasmado com a obra e queria falar com ele. Marcaram encontro num bar, e quando chegou, lá já estava o homem, um senhor bem vestido e simpático. Nuno achou que se tratasse do proprietário de uma galeria de arte. Mas -nova surpresa- não era nada disso: o homem era dono de uma indústria farmacêutica. - Somos especializados em soníferos -explicou. - E há muito tempo procuramos o medicamento ideal para a insônia. Já estávamos desistindo quando li a notícia sobre seu trabalho. E aí não tive dúvida: você nos resolve o problema. Queremos autorização para comercializar seu vídeo como sonífero. E pagamos muito bem. A princípio ele pensou em recusar, indignado. Mas era um artista pobre e, além disso, aquilo representava uma divulgação, ainda que insólita, de sua obra. Concordou. O vídeo faz grande sucesso. Todo mundo dorme ao vê-lo; revistas médicas publicaram artigos entusiásticos a respeito. Nuno ganha muito dinheiro. Mas ainda espera pelo grande momento, o momento em que alguém lhe dirá: sua obra é impressionante; por causa dela perdi o sono e nunca mais consegui recuperá-lo.

2. Sonho impossível
Casais trocam o salão pela festa na areia. O casamento na praia está se popularizando. Cotidiano, 18.abr.2004

A primeira vez que ela o viu, ele caminhava sozinho pela praia, um rapaz alto, bonito, ainda que de expressão triste. Apaixonou-se instantaneamente, e desde então observava-o sempre, por entre as ondas: não ousava se aproximar da praia. Nunca se falaram; ela tinha a impressão de que ele a via, e até que lhe sorria, o que fazia seu coraçãozinho bater mais forte. Era um amor impossível, ela sabia disso, mas nem por isso menos intenso.
E então, uma noite, ela o avistou. Já não estava sozinho, estava entre muitas pessoas, todas bem vestidas. E ele próprio estava acompanhado de uma linda moça, vestida de noiva: era o seu casamento.
O desespero dela foi enorme. Ela podia, sim, recorrer a seu mágico poder. Bastaria que entoasse a irresistível canção que, desde há séculos, enlouquecia marinheiros. Ele deixaria tudo e entraria mar adentro, caindo em seus braços.
Mas isso ela não faria. Sabia que se tratava de um sonho impossível. Sereias e humanos não podem se amar. A única coisa que lhe restava era chorar, deixando cair na água do mar, ou na areia da praia, as suas sentidas lágrimas.


Moacyr Scliar escreve às segundas-feiras, nesta coluna, um texto de ficção baseado em reportagens publicadas no jornal.


Texto Anterior: Habitação: Sem-teto critica Lula e promete invasões
Próximo Texto: Consumo: Leitora de SP reclama dos procedimentos da Panasonic
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.