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MOACYR SCLIAR
Sono invencível, sonho impossível
1. Sono invencível
Artes plásticas: mostra de vídeos no
Paço das Artes faz público dormir.
Sentada num pufe branco, estudante
dormia diante da projeção. Ilustrada, 18 de abril de 2004
Durante meses Nuno
aguardara com ansiedade a
mostra. Tinha certeza de que a
projeção de seu vídeo artístico, intitulado "Alerta", representaria
uma consagração. Animado por
tal esperança, foi várias vezes ao
Paço das Artes. Para sua amarga
decepção, sempre havia alguém,
sentado ou deitado no pufe, dormindo a sono solto diante do
écran. É o fim da minha carreira,
pensava, amargo. Por isso, foi
com surpresa que recebeu o
telefonema de um empresário
que se dizia entusiasmado com a
obra e queria falar com ele.
Marcaram encontro num bar, e
quando chegou, lá já estava o homem, um senhor bem vestido e
simpático. Nuno achou que se
tratasse do proprietário de uma
galeria de arte. Mas -nova surpresa- não era nada disso: o
homem era dono de uma indústria farmacêutica.
- Somos especializados em soníferos -explicou. - E há muito
tempo procuramos o medicamento ideal para a insônia. Já estávamos desistindo quando li a
notícia sobre seu trabalho. E
aí não tive dúvida: você nos resolve o problema. Queremos autorização para comercializar seu
vídeo como sonífero. E pagamos
muito bem.
A princípio ele pensou em
recusar, indignado. Mas era um
artista pobre e, além disso, aquilo
representava uma divulgação,
ainda que insólita, de sua obra.
Concordou.
O vídeo faz grande sucesso. Todo mundo dorme ao vê-lo; revistas médicas publicaram artigos
entusiásticos a respeito. Nuno ganha muito dinheiro. Mas ainda
espera pelo grande momento, o
momento em que alguém lhe dirá: sua obra é impressionante; por
causa dela perdi o sono e nunca
mais consegui recuperá-lo.
2. Sonho impossível
Casais trocam o salão pela festa na
areia. O casamento na praia está se
popularizando. Cotidiano, 18.abr.2004
A primeira vez que ela o
viu, ele caminhava sozinho
pela praia, um rapaz alto, bonito,
ainda que de expressão triste.
Apaixonou-se instantaneamente,
e desde então observava-o sempre, por entre as ondas: não ousava se aproximar da praia. Nunca
se falaram; ela tinha a impressão
de que ele a via, e até que lhe sorria, o que fazia seu coraçãozinho
bater mais forte. Era um amor
impossível, ela sabia disso, mas
nem por isso menos intenso.
E então, uma noite, ela o
avistou. Já não estava sozinho,
estava entre muitas pessoas, todas bem vestidas. E ele próprio
estava acompanhado de uma linda moça, vestida de noiva: era o
seu casamento.
O desespero dela foi enorme.
Ela podia, sim, recorrer a seu mágico poder. Bastaria que entoasse
a irresistível canção que, desde há
séculos, enlouquecia marinheiros.
Ele deixaria tudo e entraria mar
adentro, caindo em seus braços.
Mas isso ela não faria. Sabia
que se tratava de um sonho
impossível. Sereias e humanos
não podem se amar. A única coisa que lhe restava era chorar,
deixando cair na água do mar, ou
na areia da praia, as suas sentidas lágrimas.
Moacyr Scliar escreve às segundas-feiras, nesta coluna, um texto de ficção
baseado em reportagens publicadas no
jornal.
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