|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
PASQUALE CIPRO NETO
O lábio leporino e a "Operação Smile"
Um belo dia, aprendemos
na escola que existem adjetivos e locuções adjetivas. Estas
nada mais são do que expressões
equivalentes a um adjetivo. Em
vez de "povo brasileiro", por
exemplo, pode-se dizer "povo do
Brasil". No primeiro caso, "brasileiro" é adjetivo; no segundo, "do
Brasil" é locução adjetiva.
As gramáticas costumam trazer
boa parte da equivalência entre
adjetivos e locuções adjetivas, o
que, na verdade, visa a enriquecer o vocabulário erudito, que é
preciso ter. Esses adjetivos, de uso
restrito, normalmente se apóiam
na forma latina ou grega. O adjetivo relativo a "baço", por exemplo, é "esplênico". O que equivale
a "de pedra" é "pétreo".
Em "Satélite", memorável poema de Manuel Bandeira, encontramos "plúmbeo" ("No céu
plúmbeo, a lua baça paira..."),
adjetivo de base latina, equivalente a "de chumbo". Não é à toa
que o símbolo químico do chumbo (que vem de "plumbu") é "Pb".
Pois bem. O governo do Rio
Grande do Norte está empenhado
em nobilíssima campanha, a de
operar as crianças que têm lábio
leporino, fenda palatina e outras
deformidades. Nota dez para os
mentores da iniciativa.
O adjetivo "palatino" se refere
ao palato, o popular "céu da boca". É bom lembrar que "palato"
é palavra paroxítona. Lê-se "paláto", e não "pálato".
O adjetivo "leporino" diz respeito à "lebre", aquela mesma da fábula de Esopo. "Lebre" vem do latim "lepore", de que deriva "leporino". A raiz grega relativa a esse
simpático mamífero é "lago".
"Lagoquilia" nada mais é do que
a versão grega de "lábio de lebre"
("quilo" significa "lábio").
Essa correspondência entre elementos gregos e latinos é comum
quando se trabalha com nomenclatura específica. O apagão nos
faz ouvir falar em "energia eólica". Grego, o adjetivo "eólico" se
refere ao vento, palavra de origem latina. "Anemo" é outra raiz
grega relativa ao "vento". É "anemófobo" (ou "anemofóbico")
quem tem medo de vento.
Vamos voltar ao lábio leporino
e à fenda palatina. Sabe como se
chama a campanha do governo
do Rio Grande do Norte? Chama-se "Operação Smile". Câmara
Cascudo não merece tamanha
desfeita. Criativo na primeira
parte ("operação", que, a um
tempo, lembra cirurgia e estratégia para que se concretize determinado objetivo), o nome termina melancolicamente ("smile"),
numa triste demonstração de
nosso colonialismo incurável. Será que "Operação Sorriso" seria
tão incompreensível assim? Nota
zero para os mentores do nome.
É por essas e outras que o bem-intencionado deputado Aldo Rebelo se sente encorajado a levar
adiante seu projeto, com o qual
-digo pela enésima vez- não é
possível concordar, já que seus
pressupostos não condizem com a
história das línguas. Imaginar a
existência de "línguas puras" é sinal de ingenuidade.
Discordar do projeto, no entanto, não significa perder o direito
de criticar tolices como a "Operação Smile". Num estado cujo adjetivo pátrio é "potiguar", bela
palavra tupi que significa "comedor de camarão", não faz sentido
uma "Operação Smile".
Que as crianças potiguares necessitadas da cirurgia tenham direito ao sorriso! É isso.
Pasquale Cipro Neto escreve nesta coluna às quintas-feiras.
E-mail - inculta@uol.com.br
Texto Anterior: Família mora há 16 anos sob ponte Próximo Texto: Trânsito: Túnel Jânio Quadros será interditado Índice
|