São Paulo, quinta-feira, 26 de julho de 2001

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PASQUALE CIPRO NETO

O lábio leporino e a "Operação Smile"

Um belo dia, aprendemos na escola que existem adjetivos e locuções adjetivas. Estas nada mais são do que expressões equivalentes a um adjetivo. Em vez de "povo brasileiro", por exemplo, pode-se dizer "povo do Brasil". No primeiro caso, "brasileiro" é adjetivo; no segundo, "do Brasil" é locução adjetiva.
As gramáticas costumam trazer boa parte da equivalência entre adjetivos e locuções adjetivas, o que, na verdade, visa a enriquecer o vocabulário erudito, que é preciso ter. Esses adjetivos, de uso restrito, normalmente se apóiam na forma latina ou grega. O adjetivo relativo a "baço", por exemplo, é "esplênico". O que equivale a "de pedra" é "pétreo".
Em "Satélite", memorável poema de Manuel Bandeira, encontramos "plúmbeo" ("No céu plúmbeo, a lua baça paira..."), adjetivo de base latina, equivalente a "de chumbo". Não é à toa que o símbolo químico do chumbo (que vem de "plumbu") é "Pb".
Pois bem. O governo do Rio Grande do Norte está empenhado em nobilíssima campanha, a de operar as crianças que têm lábio leporino, fenda palatina e outras deformidades. Nota dez para os mentores da iniciativa.
O adjetivo "palatino" se refere ao palato, o popular "céu da boca". É bom lembrar que "palato" é palavra paroxítona. Lê-se "paláto", e não "pálato".
O adjetivo "leporino" diz respeito à "lebre", aquela mesma da fábula de Esopo. "Lebre" vem do latim "lepore", de que deriva "leporino". A raiz grega relativa a esse simpático mamífero é "lago". "Lagoquilia" nada mais é do que a versão grega de "lábio de lebre" ("quilo" significa "lábio").
Essa correspondência entre elementos gregos e latinos é comum quando se trabalha com nomenclatura específica. O apagão nos faz ouvir falar em "energia eólica". Grego, o adjetivo "eólico" se refere ao vento, palavra de origem latina. "Anemo" é outra raiz grega relativa ao "vento". É "anemófobo" (ou "anemofóbico") quem tem medo de vento.
Vamos voltar ao lábio leporino e à fenda palatina. Sabe como se chama a campanha do governo do Rio Grande do Norte? Chama-se "Operação Smile". Câmara Cascudo não merece tamanha desfeita. Criativo na primeira parte ("operação", que, a um tempo, lembra cirurgia e estratégia para que se concretize determinado objetivo), o nome termina melancolicamente ("smile"), numa triste demonstração de nosso colonialismo incurável. Será que "Operação Sorriso" seria tão incompreensível assim? Nota zero para os mentores do nome.
É por essas e outras que o bem-intencionado deputado Aldo Rebelo se sente encorajado a levar adiante seu projeto, com o qual -digo pela enésima vez- não é possível concordar, já que seus pressupostos não condizem com a história das línguas. Imaginar a existência de "línguas puras" é sinal de ingenuidade.
Discordar do projeto, no entanto, não significa perder o direito de criticar tolices como a "Operação Smile". Num estado cujo adjetivo pátrio é "potiguar", bela palavra tupi que significa "comedor de camarão", não faz sentido uma "Operação Smile".
Que as crianças potiguares necessitadas da cirurgia tenham direito ao sorriso! É isso.


Pasquale Cipro Neto escreve nesta coluna às quintas-feiras.
E-mail - inculta@uol.com.br


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