São Paulo, terça-feira, 26 de agosto de 2008

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CECILIA GIANNETTI

Um cinema esfumaçado na lembrança


Paissandu, última fortaleza dos que têm fraco por cigarros e filmes sem Lindsay Lohan no elenco, vai fechar

VÃO FECHAR o Paissandu. O que você, que não vive no Rio de Janeiro, tem a ver com isso? Aliás, que tem a ver com isso quem aqui vive e não vê pra quê entrar num cineminha no bairro do Flamengo para assistir aos filmes que não passam nos shoppings e nas redes tentaculares de cinemões?
Tem a ver se gosta mais de algumas películas do que de certas pessoas; se é, às vezes, xingado de hermético-cinéfilo-xiita, quando se põe a explicar longamente a irrefutável importância da compleição (e inteligência) frágeis de Mia Farrow para compor com sucesso sua Rosemary -aquela, do bebê-; se você é fã-fumante inveterado de cinema, último reduto de charmosas baforadas na telona... ao menos em filmes mais antigos, pois hoje astros e estrelas não surgem em cena dando esse exemplo ao público -que segue fumando, "nonetheless". Por outro lado, até que o veto politicamente correto é bom: não há charme algum na sujeita Lindsay Lohan, que traga um cigarro como se estivesse acocorada no pátio de um presídio tomando sol com as "calega".
Divago, como sói ocorrer quando fico uma arara por qualquer motivo; e hoje o motivo é que o Paissandu vai fechar, por falta de verba. Os 48 anos de atividades do Paissandu apresentaram a muitos seus primeiros Bergman, Godard, Truffaut. Para arrematar, permitia-se lá que seu público fumasse, imitando como podia a elegância dos ídolos na tela.
Paissandu, última fortaleza dos que têm fraco por cigarros e filmes sem Lindsay Lohan no elenco. Não que o Rio não disponha de outras salas para longas-metragens "de arte". Pelo contrário, há inclusive as que procuram reproduzir o ambiente do entorno desses cinemas "de arte": cafés, livrarias, luz baixa, jazz ao fundo -nenhuma praça de alimentação de shopping à vista. E, no final das contas, acabam exibindo em sua maioria a Lindsay Lohan de cócoras puxando fumo (quando ela consegue fugir do "rehab" pra filmar).
p.s.: meu recado à família nuclear brasileira: não estou aqui a fazer propaganda pró-fumo. Comento apenas o que vejo pela minha "Cidade Desencantada", os paradoxos. A área cinza e esfumaçada que teve vez na era que antecedeu o PC.
Pouco antes de os bares baixarem a restrição ao fumo, o Paissandu permitia que sua clientela esfumaçasse o ambiente à moda noir. Olhares furtivos eram trocados entre as brumas cancerígenas e a escuridão. Tinha seu charme aquela brasa acesa no escuro de uma sala e de repente alguém perguntar: "Empresta o isqueiro?". E dali pro chope, dali pro beijo, pra quê?
Todo o preâmbulo foi pra eu chegar aqui, a miúdas tristezas que o fechamento do Paissandu me lembra -me inspira, me traga, por associações disparatadas para quem não conhece a vizinhança onde ainda sobrevive o cineminha.
No próximo dia 31, quando fechar as portas (e sem ar-refrigerado... Haja amor pelo cinema!), o Paissandu será menos um naco de segurança para o bairro. O Café Lamas, que há 131 anos recebe fiel clientela na Marquês de Abrantes, me dá a mesma sensação de conforto: ele está lá. Ele é sólido. Como o Palácio do Catete, onde Getúlio Vargas, sabe como é... o velho se foi, os jardins continuam lá. Muita gente que conheço desapareceu, ou mudou de cara, graças a injeções de gordura de ganso na face ou incompreensíveis pinotes de personalidade. Mas as coisas do bairro permanecem onde sempre devem estar, e me consolam quando um amigo some da vida ou se transforma em coisa que não lembra sua antiga humanidade.


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