São Paulo, quinta-feira, 26 de setembro de 2002

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PASQUALE CIPRO NETO

"Beber é mal, mas..."

Talvez não seja necessário começar o texto com a velha dica: "mal" se opõe a "bem"; "mau" se opõe a "bom". Bem, afirmei que não ia dar a dica, mas acabo de dá-la. Sabe como se chama isso? Anote aí: "preterição". Quando se diz que não se vai fazer tal coisa que, na verdade, já se fez ou se está fazendo, ocorre a tal da preterição.
Quer um exemplo bem comum do emprego dessa figura? Lá vai: "Não quero me meter na sua vida, mas acho que você...". Parece claro, não? Mas o assunto de hoje não é a preterição, não; é mesmo a velha questão "mal"/"mau".
Vamos lá, pois. Certa vez, a Fuvest pediu aos candidatos que escrevessem uma frase para cada um dos três valores morfológicos da palavra "mal". Três valores? Sim, são três. Dois deles logo nos vêm à mente: advérbio de modo e substantivo. Não faltam exemplos de "mal" com valor de advérbio: "Fulano joga mal"; "Investir em obras caras e desnecessárias é a melhor maneira de administrar mal o que é de todos"; "O avanço tecnológico não impede que boa parte do planeta viva muito mal".
Também não faltam exemplos do emprego de "mal" como substantivo: "A angústia é mal incurável"; "É preciso cortar o mal pela raiz"; "Isso é um mal necessário"; "Maldita sejas pelo Ideal perdido! / Pelo mal que fizeste sem querer! / Pelo amor que morreu sem ter nascido!" (de Olavo Bilac, citado no "Aurélio").
E qual seria o terceiro valor morfológico de "mal"? Veja um exemplo para ir pensando no assunto: "Mal você saiu, ela chegou". Já descobriu? Não? Então vamos por equivalência. O que se poderia colocar no lugar desse "mal"? Que tal "logo que", "assim que", "nem bem"? Vamos ver: "Assim que/Logo que/Nem bem você saiu, ela chegou". Pois bem, nesse caso, "mal" é conjunção, já que liga duas orações, estabelecendo entre elas nexo de tempo.
É bom que se diga que a questão da Fuvest não pedia aos candidatos que identificassem cada um dos valores morfológicos de "mal", ou seja, não era preciso dizer que em tal frase o valor de "mal" era este, aquele ou aqueloutro. Bastava demonstrar o conhecimento das diversas possibilidades de emprego do vocábulo.
Em seu último vestibular, o ITA explorou o tema de modo particularmente interessante. Pedia-se a classificação gramatical de "mal" neste "aforismo" (foi o termo que a banca empregou) de Millôr Fernandes: "Beber é mal, mas é muito bom". "Mal" e "bom" na mesma frase, e como elementos antagônicos? É isso mesmo, caro leitor. E como fica a velha dica? Ou Millôr não sabe escrever? Sabe, sim, e como!
Nesse aforismo ("sentença moral", "máxima"), Millôr concretiza o eterno objetivo de quem escreve: dizer o que muitos já disseram de maneira inédita. Em "Beber é mal", Millôr emprega "mal" como substantivo. Lembre-se de que o sujeito de "é" é "beber", o que impede que "mal" seja "advérbio". Quando se diz que alguém é X, esse X pode ser um adjetivo ou um substantivo ("João é inteligente"; "João é professor").
Em suma, Millôr diz que beber é um mal, mas é um mal bom. É por essas e outras que, como sempre, vale a velha dica: nada de bitolinhas, macetes etc. Melhor mesmo é pensar. É isso.


Pasquale Cipro Neto escreve nesta coluna às quintas-feiras.
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