|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
PASQUALE CIPRO NETO
"Beber é mal, mas..."
Talvez não seja necessário
começar o texto com a velha
dica: "mal" se opõe a "bem";
"mau" se opõe a "bom". Bem,
afirmei que não ia dar a dica,
mas acabo de dá-la. Sabe como se
chama isso? Anote aí: "preterição". Quando se diz que não se
vai fazer tal coisa que, na verdade, já se fez ou se está fazendo,
ocorre a tal da preterição.
Quer um exemplo bem comum
do emprego dessa figura? Lá vai:
"Não quero me meter na sua vida, mas acho que você...". Parece
claro, não? Mas o assunto de hoje
não é a preterição, não; é mesmo
a velha questão "mal"/"mau".
Vamos lá, pois. Certa vez, a Fuvest pediu aos candidatos que escrevessem uma frase para cada
um dos três valores morfológicos
da palavra "mal". Três valores?
Sim, são três. Dois deles logo nos
vêm à mente: advérbio de modo e
substantivo. Não faltam exemplos de "mal" com valor de advérbio: "Fulano joga mal"; "Investir
em obras caras e desnecessárias é
a melhor maneira de administrar
mal o que é de todos"; "O avanço
tecnológico não impede que boa
parte do planeta viva muito mal".
Também não faltam exemplos
do emprego de "mal" como substantivo: "A angústia é mal incurável"; "É preciso cortar o mal pela raiz"; "Isso é um mal necessário"; "Maldita sejas pelo Ideal
perdido! / Pelo mal que fizeste
sem querer! / Pelo amor que morreu sem ter nascido!" (de Olavo
Bilac, citado no "Aurélio").
E qual seria o terceiro valor
morfológico de "mal"? Veja um
exemplo para ir pensando no assunto: "Mal você saiu, ela chegou". Já descobriu? Não? Então
vamos por equivalência. O que se
poderia colocar no lugar desse
"mal"? Que tal "logo que", "assim
que", "nem bem"? Vamos ver:
"Assim que/Logo que/Nem bem
você saiu, ela chegou". Pois bem,
nesse caso, "mal" é conjunção, já
que liga duas orações, estabelecendo entre elas nexo de tempo.
É bom que se diga que a questão
da Fuvest não pedia aos candidatos que identificassem cada um
dos valores morfológicos de
"mal", ou seja, não era preciso dizer que em tal frase o valor de
"mal" era este, aquele ou aqueloutro. Bastava demonstrar o conhecimento das diversas possibilidades de emprego do vocábulo.
Em seu último vestibular, o ITA
explorou o tema de modo particularmente interessante. Pedia-se
a classificação gramatical de
"mal" neste "aforismo" (foi o termo que a banca empregou) de
Millôr Fernandes: "Beber é mal,
mas é muito bom". "Mal" e
"bom" na mesma frase, e como
elementos antagônicos? É isso
mesmo, caro leitor. E como fica a
velha dica? Ou Millôr não sabe escrever? Sabe, sim, e como!
Nesse aforismo ("sentença moral", "máxima"), Millôr concretiza o eterno objetivo de quem escreve: dizer o que muitos já disseram de maneira inédita. Em "Beber é mal", Millôr emprega "mal"
como substantivo. Lembre-se de
que o sujeito de "é" é "beber", o
que impede que "mal" seja "advérbio". Quando se diz que alguém é X, esse X pode ser um adjetivo ou um substantivo ("João é
inteligente"; "João é professor").
Em suma, Millôr diz que beber é
um mal, mas é um mal bom. É
por essas e outras que, como sempre, vale a velha dica: nada de bitolinhas, macetes etc. Melhor mesmo é pensar. É isso.
Pasquale Cipro Neto escreve nesta coluna às quintas-feiras.
E-mail - inculta@uol.com.br
Texto Anterior: Centro da cidade tem dia caótico Próximo Texto: Trânsito: Muda sentido em rua do Jd. da Saúde Índice
|