São Paulo, domingo, 26 de novembro de 2000

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VIOLÊNCIA
Criminosos desafiam o poder público, ameaçam a população e ditam regras nas regiões mais pobres da cidade
Periferia de SP é sitiada por traficantes

João Wainer/Folha Imagem
Crianças brincam em ruínas da Creche Municipal da Vila Aimoré, destruída por moradores depois que traficantes ocuparam o local


GABRIELA ATHIAS
MARIO CESAR CARVALHO

DA REPORTAGEM LOCAL

Padres ameaçados de morte, toque de recolher em ruas e escolas, creche destruída, salas de alfabetização fechadas. Esse cenário, cuja aparência mescla conflitos do sul do Pará com a guerra da Bósnia, é resultado da ascensão de um novo poder na periferia de São Paulo: o narcotráfico.
Pelo terror, traficantes estão sitiando as áreas que mais precisam da força do Estado -as pobres. Foi o que ocorreu na última terça-feira no Jardim Macedônia (zona sul), onde traficantes impuseram um toque de recolher em protesto contra a morte de um ex-interno da Febem.
Por duas semanas, a reportagem da Folha investigou a ação do tráfico sobre o cotidiano dos mais miseráveis nas zonas sul e leste. Encontrou uma cidade paralela onde nem creche é respeitada, como aconteceu no Jardim Armênia, na zona leste da cidade.
Ali, pequenos traficantes e usuários de crack decidiram transformar uma creche da prefeitura em "mocó", o local onde eles se reúnem para consumir a droga. O método para fazer a creche virar "mocó" foi o mais primitivo possível: depredaram o prédio para que não fosse mais possível abrigar crianças nele.
O padre Juarez Martins da Silva, 34, enfrenta o lado mais organizado do tráfico. Ele passou a ser ameaçado depois que começou a pregar contra traficantes. No dia de Corpus Christi, em junho, fez, "de propósito", a procissão passar à frente dos pontos de venda de droga, crack principalmente. Falava que a violência da zona sul é movida pelo dedo do tráfico.
No dia seguinte, dois rapazes o procuraram no confessionário: "O sr. está falando demais, padre". Semanas depois, ele recebeu um telefonema: "O sr. é novo demais para morrer", dizia a voz feminina do outro lado da linha.
Padre Juarez sabe que em todas as missas há pelo menos dois enviados do narcotráfico: "Os fiéis avisam: "Aqueles ali são do bando do Boy'", relata, referindo-se a um dos principais traficantes da região. "A situação é muito grave. Há outros padres ameaçados, mas eles têm medo de falar", diz.
Em áreas da zona sul, os traficantes impedem a abertura de ruas, o que os deixaria mais vulneráveis à ação da polícia.
Rua asfaltada e iluminada, porém, não é garantia de nada. Na rua Citeron, no Jardim Ângela (zona sul), é comum os moradores receberam cartas de traficantes avisando que eles não devem sair à rua em certo dia e horário. "Todo mundo obedece porque sabe que vem tiroteio pela frente", diz N. S. A., moradora dessa rua.
No mesmo Jardim Ângela, o distrito mais violento da cidade, a ação do tráfico já fechou até sala de aula do programa Alfabetização Solidária, do governo federal.
Não foi um caso isolado, segundo Stela Piconez, professora da Faculdade de Educação da USP e coordenadora de 70 classes do Alfabetização Solidária em São Paulo. "O professor não pode dar aula porque há uma gangue que não quer ninguém passando na rua de noite, porque há estuprador no bairro, porque há tiroteio. É um horror", desabafa Stela.
O resultado do cerco é que muitos alunos desistem do curso. "Nos locais mais perigosos, a evasão é de quase 100%", diz a professora da USP.
Cursos de formação de microempresários, ministrados pelo Sebrae (Serviço de Apoio às Micro e Pequenas Empresas), também já foram alvo de traficantes. A administradora Maria Gema Martins conta que teve que fechar um curso na zona oeste porque corria risco de vida. "Tinha bandido armado na sala esperando eu dizer algo que eles não gostassem para puxar a arma", diz.
Ela diz não ter dúvidas de que se trata de uma disputa de poder: "Os traficantes se sentem dono do pedaço e não querem saber de intrusos nem de concorrência".

Falta organização
A política de terror do tráfico em São Paulo parece uma consequência da falta de organização na periferia da cidade, segundo a socióloga Alba Zaluar, da Universidade Estadual do Rio de Janeiro, pesquisadora da violência no Rio.
"As favelas do Rio são mais antigas que as da periferia de São Paulo. Os moradores das favelas cariocas são mais organizados e o tráfico precisa desse apoio", diz. Vem daí a política assistencialista do tráfico no Rio.
Para conquistar esse apoio, os traficantes passaram a controlar as associações de moradores. A Federação das Associações de Moradores de Favelas do Estado do Rio estima que 80% das associações está nas mãos do tráfico.
Em São Paulo, esse tipo de convivência entre o tráfico e os moradores ocorre com mais frequência em favelas antigas, como as de Heliópolis e Paraisópolis, segundo Luiz Antônio de Souza, pesquisador do Núcleo de Estudos da Violência da USP.
"Em São Paulo, o tráfico é extremamente perverso. Só a existência de comunidades organizadas estabelece limites para os traficantes, e isso quase não existe na periferia", diz Souza.
Discretamente, a política do tráfico carioca começa a chegar a São Paulo. Líderes comunitários da zona leste entrevistados pela Folha contam que traficantes já dizem que estão planejando abrir organizações assistencialistas ou colocar seus funcionários em partidos de esquerda.
A intenção é óbvia: como o terror é uma política de curto prazo e frágil, o tráfico busca uma face mais respeitável.


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