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Estado deveria negociar com detentos, diz Soares
FERNANDO DE BARROS E SILVA
EDITOR DO PAINEL
A força do PCC (Primeiro Comando da Capital) está sendo superestimada por interesses escusos e, se o Estado quiser enfrentar
de fato o crime organizado, "deveria olhar menos para baixo, para o varejo do comércio ilegal nas
favelas e periferias, e mais para o
alto, para o andar de cima da sociedade, seguindo a trilha da lavagem do dinheiro e das pistas de
pouso clandestinas".
Quem fala é o antropólogo Luiz
Eduardo Soares, ex-coordenador
de Segurança do Rio de Janeiro,
que retorna ao Brasil no início de
março, após um ano de exílio voluntário em Nova York, para onde viajou com a família fugindo
de ameaças de morte.
Soares foi demitido pelo governador Anthony Garotinho em
março do ano passado, depois de
ter apontado a existência de uma
suposta "banda podre" na polícia
carioca. A partir do próximo dia
1º, muda-se para Porto Alegre
(RS), onde irá montar um plano
de segurança pública para a cidade, a pedido do prefeito, Tarso
Genro (PT). Pretende ficar pelo
menos até dezembro na cidade.
Segundo Soares, o governo paulista deveria, neste momento, se
dispor a negociar abertamente
com os detentos, ouvindo suas
queixas e reivindicações.
"Seria uma tolice não negociar,
sob o pretexto de reforçar a autoridade. Que autoridade? Essa que
se permite representar, dentro
das penitenciárias, por agentes
que torturam, achacam, ameaçam, chantageiam e roubam? Já
chega de prepotência", afirma.
Além disso, diz, é preciso que o
Estado reconheça que o sistema
penitenciário brasileiro faliu e se
disponha a ouvir as entidades civis para reformá-lo radicalmente.
"Basta de continuar a enxugar
gelo", diz. A seguir trechos da entrevista concedida de Nova York.
Folha - O sr. vê semelhança entre
o movimento desencadeado pelo
PCC e o crime organizado no Rio?
Vê possibilidade de os grupos se articularem entre os Estados?
Luiz Eduardo Soares - Semelhanças existem: grupos de presos
adotam uma sigla e postulam a
existência de uma unidade articulada e acesso a instrumentos de
poder. Mas acho que as analogias
param aí, na superfície.
Acho improvável que os grupos
se organizem para valer mesmo
dentro dos Estados, enquanto forem liderados por pobres operadores do varejo do tráfico, que
não falam línguas estrangeiras,
não sabem administrar negócios
internacionais, não lavam dinheiro e têm acesso precário às elites.
Enquanto houver guerra entre
traficantes, saberemos que a organização do crime é fragilíssima.
Em geral, são meninos inexperientes e desesperados, sem rumo
e sem projeto, que morrem cedo e
são substituídos rapidamente, como peças de reposição.
Mas estou certo de que há, sim,
grupos criminosos de nível superior que atuam em vários Estados.
Para que os identifiquemos, teríamos de olhar menos para baixo,
para o varejo do comércio ilegal
nas favelas e periferias, e mais para o alto, para o andar de cima da
sociedade, seguindo a trilha da lavagem do dinheiro e das pistas de
pouso clandestinas.
Quando eu estava no governo
do Rio, a Polícia Civil encontrou
22 aeroportos clandestinos. Montei um grupo interinstitucional
para agir com urgência e profundidade. Desde que saí, não tive
mais informações. Mas tudo indica que os aeroportos continuam
funcionando.
As rotas supostas ligariam o litoral rico fluminense ao rico interior paulista. Angra dos Reis reúne a maior concentração de embarcações privadas do país. Nos
fins-de-semana e nas férias, parte
expressiva do PIB brasileiro toma
banho de sol em suas ilhas e
praias. O mercado mais poderoso
do tráfico mobiliza aviões e articulações influentes.
Enquanto os aeroportos clandestinos provavelmente continuam servindo aos atacadistas de
armas e drogas, a Secretaria de Segurança e a PM do Rio invadem as
favelas de forma irresponsável e
criminosa, colocando em risco a
vida dos policiais e da população.
Folha - A megarrebelião em São
Paulo não o surpreendeu?
Soares - O que mais me choca é
constatar que as décadas passam,
os governos se sucedem e nós
continuamos cúmplices, por inércia, da reprodução dessa máquina
de moer gente, que é absurda, ineficaz, cruel e onerosa: o sistema
penitenciário. Nenhuma providência radical é tomada e nós nos
limitamos a criticar ou justificar a
situação, quando explode uma
crise. Comandos, celulares, grupos organizados, tudo isso é secundário diante do fato dramático que são as condições de nossos
presídios. Continuamos encarcerando em proporções crescentes e
não experimentamos a sério alternativas às penas de cerceamento da liberdade.
Folha - É possível estimar o grau
de envolvimento de agentes penitenciários aos diretores do sistema
com esses grupos organizados?
Soares - Não conheço o caso
paulista, mas, no Rio, sei que o envolvimento dos agentes é enorme.
O secretário da Justiça é um homem sério e bem intencionado,
mas não conta com o apoio do governador para intervir com energia e quebrar os elos que, desde
1995, ligam os agentes aos presos.
O barril de pólvora é tão perigoso,
no Rio, que as autoridades têm
medo de mexer e provocar uma
explosão sem paralelo. Há presos
com 20 advogados, que os visitam
várias vezes por dia. Há mais celulares do que na sede da Folha.
Folha - O governo decidiu endurecer com o PCC e não quer negociar. Deveria?
Soares - Claro que sim. Seria
uma tolice não negociar, sob o
pretexto de reforçar a autoridade.
Que autoridade? Essa que se permite representar, dentro das penitenciárias, por agentes que torturam, achacam, ameaçam, chantageiam e roubam? Basta de prepotência. A negociação pode ser o
caminho para um início da reforma do inferno. Aí sim a autoridade se imporá com força e legitimidade. O foco agora deveria ser: vamos ouvir o que os presos têm a
dizer, vamos abrir a questão para
a sociedade com audácia, rever o
sistema. Quem achar que isso estimularia mais revoltas, engana-se. Não conhece a realidade. O
que estimula as revoltas, além de
agentes corruptos, é a prepotência oficial, a arrogância do Estado,
a humilhação, a violência cínica
reiterada. É preciso estancar as
fontes dos problemas, ou estaremos condenados a enxugar gelo.
Folha - Qual sua avaliação sobre a
atuação do governo federal na
área de segurança desde que foi
lançado, em meados do ano passado, o Plano Nacional de Segurança?
Soares - O Plano Nacional de Segurança é o modo mais vistoso de
não se ter uma política. Não é um
plano, muito menos uma política
de segurança. É uma listagem heterogênea de problemas, iniciativas e metas as mais diferentes,
com graus de relevância os mais
diversos. Há alvos importantíssimos e questões secundárias.
Em alguns itens do plano, apresenta-se como compromisso original o que não passa de obrigação constitucional descumprida.
Ao invés de definir três ou quatro
grandes objetivos e investir neles
os recursos e as energias, o plano
tem a pretensão de atingir mais de
cem metas. Ninguém, em sã consciência, pode acreditar que um
governo federal postergue a problemática urgente e dramática da
segurança pública para o sétimo
ano de sua administração, defina
mais de cem metas e tenha qualquer chance de cumpri-las.
Folha - O sr. foi convidado para
desenvolver seu trabalho na Prefeitura de Porto Alegre. Essa experiência pode servir de laboratório
para uma atuação na área de segurança em âmbito nacional?
Soares - Fui convidado pelo prefeito Tarso Genro para desenhar
um programa de segurança pública cidadã para Porto Alegre.
Será um grande desafio, porque a
tarefa nunca foi tentada e porque
as determinações constitucionais
restringem muito a ação municipal, na área da segurança. Mas, se
a experiência for bem sucedida,
poderá servir de referência nacional. Nesse sentido, Porto Alegre
será um laboratório.
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