São Paulo, terça-feira, 27 de fevereiro de 2001

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MARILENE FELINTO

Os gravatas

É assim que prisioneiros ligados ao PCC (Primeiro Comando da Capital), a organização criminosa que atua nos presídios de São Paulo, chamam as autoridades: "os gravatas".
Claro que o apelido se deu por oposição: o uniforme dos presos é bem outro, todos deitados no chão para a revista da tropa de choque, todos nus, vestindo apenas uma cueca. Nudez é coisa de pré-história, coisa de homem incivilizado.
Gravata é poder, e pênis, símbolo fálico por excelência -e já foi sinônimo de respeito. Hoje nada significa. Os homens usam não se sabe por quê.
A gravata e sua parelha, o terno, são a expressão da falta de originalidade proposital -não deixa de ser um uniforme, uma espécie de fantasia que veste um exército de burocratas, todos iguais, enfronhados em papéis e arrazoados inúteis, alheios ao significado da vida real.
Estavam de terno e gravata, por exemplo, os três militares sérvios da Bósnia julgados no dia 22 último pelo tribunal de crimes de guerra em Haia, na Holanda. Os três foram considerados culpados de torturar e estuprar meninas de 12 e 15 anos de idade na guerra da Bósnia (1991-95). Foi o primeiro julgamento em que abusos sexuais foram qualificados como crime contra a humanidade.
Esses criminosos estavam de terno e gravata para quê? Para impor respeito? Para demonstrar respeito pelos outros homens de gravata no tribunal?
No universo dos presídios, "gravatas" são os advogados, os juízes, os políticos e seus secretários. Todos muito cobertos, protegidos. Certamente os presos, nus, enxergam o terno e a gravata (de origem inglesa, se não me engano) como uma fantasia cínica que a autoridade criou e usa para se esconder, se mascarar, se diferenciar do populacho encarcerado.
Os gravatas de Brasília é que deram um show de falta de respeito na semana passada: delações, denúncias, acusações mútuas de corrupção, grampos. O senador Antonio Carlos Magalhães chamou o ministro dos transportes de "Eliseu Quadrilha" (em vez de Padilha). Afirmou que basta quebrar o sigilo de Eduardo Jorge, ex-assessor de não-sei-quê de Fernando Henrique Cardoso, para se chegar ao próprio presidente. Disse ainda que teria a lista de todos que votaram (em voto supostamente secreto e eletrônico) contra ou a favor do ex-senador cassado Luiz Estevão. E acusou a senadora Heloísa Helena (PT-AL) de ter votado a favor de Luiz Estevão a pedido de Renan Calheiros (PMDB-AL). A senadora chamou ACM de "canalha" na TV. E todos usam terno e gravata, com exceção da senadora, mulher a quem, como sempre, cabe o papel de "traidora" no fim da história.


Por falar em máscaras, Carnaval tem, definitivamente, um quê de manifestação cultural cafona e medíocre. No Rio de Janeiro, o cantor brega-romântico Elimar Santos é que inaugurou domingo o desfile do sambódromo: todo de branco, cantando num carro de som, e a platéia acenando lenços brancos. Era uma manifestação de paz. Que paz? Depois entrou na passarela o supra-sumo da cultura inútil: Silvio Santos e sua turma.
E Carnaval é a época em que fazem a concessão de enfiar negros na TV, nas colunas sociais das revistas, dos jornais. E é também a única época em que distribuem camisinhas grátis, a torto e a direito, como se fosse uma obrigação fazer sexo nesses dias, ou como se não se fizesse no resto do ano.
Ouvi dizer em algum lugar que estão querendo acabar com o terno e a gravata. Podiam acabar também com o Carnaval.

E-mail: mfelinto@uol.com.br



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