São Paulo, domingo, 27 de fevereiro de 2005

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DANUZA LEÃO

Minha amiga querida

Era uma amiga maravilhosa; aquela que se alegrava com minhas alegrias, aceitava todas as loucuras -e ria delas- e sofria junto quando era para sofrer.
Morávamos em países diferentes, e nem nos comunicávamos tanto assim, mas quando nos encontrávamos, era tudo igual, como se o tempo não houvesse passado. Foi assim durante muitos anos.
Ela não estava bem, mas como se queixava de tudo, sempre, mesmo quando não havia nenhuma razão para isso -e eu achava graça-, nunca achei que fosse sério. Mas há uns meses uma amiga telefonou e perguntou: "É verdade que Bombom morreu?"
Foi um choque, e nunca pensei que fosse tão covarde -ou que tivesse tanto medo de sofrer. Não consegui pegar o telefone e ligar para saber, até porque já sabia que essas notícias não chegam assim, de graça. Tempos depois, outra amiga ligou fazendo a mesma pergunta, e o número de seu telefone me veio imediatamente à memória: 4504-3148.
Eu sempre acho que tenho um método para não sofrer -chega. Na hora penso que a vida é assim mesmo, que faz parte, que é melhor não pensar, sobretudo porque não teria com quem dividir essa dor. Os amigos são outros, nenhum deles entenderia que a ligação entre nós duas passou por casamentos, paixões, alegrias, tristezas; seria impossível explicar. Deixei o tempo passar e até me achei fria, tal a aparente indiferença com o desaparecimento de alguém que significou tanto para mim durante tantas fases da vida.
Meses se passaram, e viajei para a cidade onde ela morava. Quando entrei no quarto do hotel, foi automático: a primeira coisa em que pensei -como sempre, aliás- foi ligar para ela. O número de telefone estava fresco na cabeça, mas não tive coragem.
Passei dois ou três dias até que um dia liguei; na verdade, já sabia o que ia acontecer: o telefone não respondeu. Foi muito ruim.
Não há religião, conhecimento de vida, nada, rigorosamente nada, que explique que um dia existia uma pessoa de carne e osso, às vezes alegre, às vezes triste, que falava, com quem você trocava idéias, e que de repente, de um dia para o outro, essa pessoa não existe mais. Mas como, não existe mais?
E as confidências, as experiências compartilhadas, a lembrança de tudo que vivemos juntas, então nada existe mais? Onde foi parar tudo isso? Só na minha memória?
Tem sido, além de doloroso, incompreensível. Onde está minha amiga que gargalhava comigo, que participou de tantos acontecimentos importantes de minha vida -e eu da dela-, que estava sempre lá, feliz porque eu havia chegado, sempre se queixando de alguma coisa e eu rindo de suas queixas?
Quando uma pessoa muito querida desaparece, a gente também morre um pouco; sei que o sofrimento vai melhorar, um dia vai até passar, mas todas as vezes que eu viajar para sua cidade vou, automaticamente, querer ligar para ela, sem precisar pegar a agenda para saber do número: 4504-3148.
Mas a vida é cruel: um dia vou esquecer desse número. Vou ter muitas saudades dela durante muito tempo, mas essa saudade vai diminuir, até ser uma lembrança menos sofrida.
As dores diminuem; é injusto, mas é assim que as coisas são, e só por elas serem assim é que conseguimos continuar a viver.

E-mail - danuza.leao@uol.com.br


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