São Paulo, segunda, 27 de abril de 1998

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Jegues levam água ao vilarejo de "Central do Brasil'

FÁBIO GUIBU
Cruzeiro do Nordeste

A população do vilarejo de Cruzeiro do Nordeste, onde foram filmadas cenas de "Central do Brasil", no sertão de Pernambuco, depende há quase meio século do trabalho dos chamados "profissionais da água" para sobreviver.
O povoado, chamado de Bom Jesus do Norte no filme, surgiu há 49 anos, e até agora não conta com um sistema de abastecimento.
Os cerca de 620 habitantes do local, a 322 km de Recife, já se acostumaram com o trânsito diário de jegues, carroças com tambores e carros-pipa pelas ruas. Mas ninguém se conforma com o que consideram "falta de vontade das autoridades" com a comunidade.
A última promessa de trazer água ao vilarejo aconteceu no dia 22 de março passado, durante a solenidade que precedeu a exibição ao ar livre de "Central do Brasil".
Sobre um palanque, o governador Miguel Arraes (PSB) prometeu implantar um sistema de abastecimento, ainda em seu governo.
"Desde novo, eu ouço promessa de que vai chegar água", diz o mais antigo morador do vilarejo, Manoel Pereira Filho, 94. "Falaram que iam colocar canos num açude aqui perto, mas demoraram tanto que o açude secou."
Pereira Filho foi um dos primeiros "profissionais da água" de Cruzeiro do Nordeste. Agricultor nascido na região, logo ele percebeu que cultivar a terra seca não era o melhor negócio.
Sobre um jegue, ele colocou quatro latas e começou a vender a água coletada de poços da região. O trabalho prosperou e logo o ex-lavrador conseguiu montar uma "frota" de oito jumentos com carroças para atender ao povoado.
Há dez anos, Pereira Filho parou de trabalhar e foi morar na área urbana com a mulher, Marieta. O negócio já não rendia tanto, por causa da sua idade e dos carros-pipa que começaram a proliferar.
Usando um caminhão com capacidade para levar 6.000 litros por viagem, Cícero Freire de Melo, 30, faz parte da segunda geração dos "profissionais da água".
Trabalhando menos, ele pode vender o produto pela metade do preço cobrado pelos vendedores que trabalham com jegues -que levam apenas 400 litros.
Melo cobra R$ 2,50 por um tambor de 24 latas, padrão em Cruzeiro do Nordeste. Lucra por mês cerca de R$ 500. Com o dinheiro, sustenta a mulher e três filhos.
Filho de um pequeno comerciante do vilarejo, Melo diz que o negócio seria ainda melhor se não se sentisse "moralmente obrigado" a vender fiado.
Segundo ele, existem clientes que estão há quatro meses sem pagar e que continuam recebendo água "porque precisam viver".
Quem tem condições, procura economizar transportando água por conta própria. É o caso da família da ex-agricultora Maria das Neves Freire do Nascimento, 46.
Pelo menos duas vezes por dia, seu filho João Paulo Freire Nascimento, 13, traz água de um poço a 2 km do vilarejo, numa carroça puxada por um jumento.



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