São Paulo, segunda, 27 de abril de 1998

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DIÁRIO DA FOME "Decidimos recusar o soro"




HUMBERTO EDUARDO PAZ
especial para a Folha

Cansado depois de uma extenuante jornada que culminou com minha transferência e de Sérgio ao Hospital das Clínicas, despertei com a última contagem do turno da noite, às 5 horas da manhã.
Depois de oito anos e meio, voltamos a ver as ruas de São Paulo, por entre as pequenas janelas da ambulância. Uma garota atravessando a rua, um boteco cheio de gente, o colorido das flores na avenida Dr. Arnaldo.
A ambulância parou, abriram as portas e, quando nos baixaram, fomos recebidos pelo olhar surpreendido dos pacientes, médicos e enfermeiros do pronto-socorro.
Não estávamos em condições de caminhar com passo firme, muito menos de correr nem sequer dez metros.
O aparato policial que nos cercava me pareceu um pouquinho exagerado, mas quem sou eu para opinar?
Depois de um rápido exame, fomos levados ao setor de observação, onde coletaram amostras de sangue e controlaram os sinais vitais. Fomos conectados a um monitor cardíaco e realizaram eletrocardiogramas. A partir desse momento, se iniciou uma tensa espera, misturada aos gritos de dor dos outros pacientes.
Aproximaram-se quatro médicos, com os resultados nas mãos e uma expressão de gravidade nos rostos. Corríamos sérios riscos de sofrer um infarto, disseram. A única medida preventiva era que nos ministrassem soro.
Sérgio e eu nos entreolhamos, muitas vezes enfrentamos lado a lado situações dramáticas. Voltamos a nos entender: a decisão estava tomada. Amamos a vida, temos lutado por ela, mas o que estava em jogo era a dignidade e o respeito pelos companheiros que ficaram no Carandiru.
Não aceitamos o soro. Decisões como essa só entendem os que passaram por situações-limite.
Depois de deliberações entre a equipe médica, o doutor Paulo César Sampaio nos comunicou que o perigo de vida não era iminente e que deveríamos voltar à penitenciária.
Na saída, nos esperavam a ansiedade e o amor de Deni, minha companheira, de Marta, minha irmã, e de Juanita, amiga querida.
Desde longe nos saudaram, agitando as mãos e nos dando força para seguir adiante. Começava um novo capítulo, outra vez juntos de nossos companheiros.
"Depois de oito anos e meio, voltamos a ver as ruas de São Paulo, por entre as pequenas janelas da ambulância."



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