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São Paulo, domingo, 27 de julho de 2003

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HABITAÇÃO

Em SP, participação em atividades coletivas e obediência a regras contam como "milhagem" para candidatos a moradia

Sem-teto disputa "pontos" para obter casa

ALENCAR IZIDORO
CHICO DE GOIS
DA REPORTAGEM LOCAL

O segurança Marcos Evangelista Mendes, 34, está desempregado há 15 dias, mas não pára de trabalhar dentro do prédio da avenida Ipiranga, antiga sede do hotel Terminus, no centro de São Paulo, que ele ocupou com um grupo de 800 sem-teto quase uma semana atrás. Ele integra a equipe de vigilância, responsável por manter a ordem, mas também faz questão de ajudar as grávidas a subir escadas e de perguntar para a cozinheira se ela quer algo. Se deixarem, dá uma força até na recreação das crianças.
É quase uma lua-de-mel para ele, que se casou oficialmente em 31 de maio. Sua mulher, Fabiana Dias do Val, 28, é uma das que esperam bebê. "Todos ajudam, todos são unidos", diz Mendes, que, sem ter onde morar, fez sua "estréia" em invasões.
A vontade de ajudar do segurança não é uma exceção entre os que participaram da "tomada" de quatro prédios do centro organizada por líderes do MSTC (Movimento dos Sem-Teto do Centro), na maior ação de grupos do setor na capital paulista nos últimos 14 meses. A razão para tanta disposição é que a disputa por um teto ainda está longe de acabar.
Mesmo se forem vitoriosos nas invasões, na resistência às reintegrações de posse e nas negociações para obter financiamentos dos governos, os sem-teto sabem que não haverá vagas para os 3.100 que ajudaram a abrir as portas de quatro imóveis (um deles já havia sido desocupado na última quinta-feira), a enfrentar a Polícia Militar e a organizar os edifícios.
No prédio da avenida Ipiranga, por exemplo, havia 86 dormitórios e 800 invasores -que ainda estavam sob ameaça de despejo, já que a reintegração de posse foi decretada anteontem. No da rua Mauá, antiga sede do hotel Santos Dumont, eram 1.200 sem-teto e 204 quartos.
Por enquanto, eles se amontoam. O critério para definir quem ficará lá, porém, vai depender do prontuário das famílias: quem dá a contribuição mensal de R$ 3 ganha um ponto; pela presença em cada reunião, mais um; pela atuação nas comissões de trabalho, mais um; pela participação em cada ato, três pontos.
A seleção final é feita com base nas pontuações, que são anotadas por líderes diariamente nas fichas familiares. Quem ficar de fora terá que esperar a próxima vez.

Organização
"Os que estiverem acomodados e não pensarem na coletividade não ganham espaço. Essa também é uma forma de evitar privilégios", diz Ivaneti de Araújo, 30, coordenadora-geral do MSTC.
O esquema de pontuações é um exemplo do nível de organização do movimento, atribuído principalmente à presença das mulheres. Elas são maioria entre os participantes -ao lado das crianças, somam 75%, segundo Araújo- e dominam a liderança.
Na 1ª coordenação do MSTC, também chamada de "executiva", há nove integrantes: oito mulheres e um homem. Na 2ª coordenação, conhecida por "ampliada", são 14 mulheres e quatro homens.
O regimento oficial, escrito e conduzido por elas, é rígido e não há margem para indisciplina. A organização começa pela divisão de tarefas: há equipes de recepção, cozinha, limpeza, manutenção e segurança -com rondas e plantões noturnos em cada andar.
Há horário para tudo. Das 22h às 6h não é permitido fazer barulho nem sair dos prédios. Na portaria, aliás, passa somente quem portar as carteirinhas com fotografia e, em alguns casos, os sem-teto chegam a ser revistados.
O regulamento proíbe a entrada de armas, drogas e bebidas alcoólicas -na quarta-feira, dois invasores foram expulsos do prédio da rua Mauá por embriaguez. O texto sobre as regras ordena a preservação do patrimônio e não permite agressões físicas e ofensas, "especialmente espancamento de mulheres e crianças".
O descumprimento das normas pode levar a três punições: advertência, reparo do dano causado ou expulsão do edifício. Elas são votadas nas assembléias, cuja presença é, mais do que estimulada, obrigatória: três faltas consecutivas podem levar à perda do direito de ficar no prédio.

Mulheres
As explicações para a presença maciça de mulheres entre os sem-teto são diversas. Começam pelas estatísticas, que mostram um avanço do sexo feminino comandando as casas. O percentual de mulheres chefes de família passou de 18,1%, em 1991, para 24,9%, em 2000, segundo dados do IBGE. Em contrapartida, as taxas de desemprego para elas chegam a ser mais de duas vezes a média.
Também não são raros os casos de mulheres casadas que participam das invasões mesmo sem serem apoiadas por seus maridos. "A luta começa dentro de casa. Meu marido prefere morar de favor do que me acompanhar", conta Darci Salles, 59, que, desempregada e sem dinheiro para alugar uma casa, participou da ocupação na rua Aurora junto com a filha de 16 anos.
"As mulheres são mais engajadas", afirma Lisete Gomes, 36, uma das coordenadoras do MSTC. O marido dela não participa do movimento, mas mora com ela dentro de uma antiga ocupação da rua Ana Cintra. "Ele tem medo da polícia", diz ela.
A líder do MSTC Ednalva Franco, 30, é mais radical. "As mulheres são mais determinadas. Se eu dependesse do meu marido, estaria na rua", diz ela, que mora com ele e os dois filhos em uma ocupação da rua Brigadeiro Tobias.


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