São Paulo, domingo, 27 de agosto de 2006

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GILBERTO DIMENSTEIN

Burrice mata


Por falta de cuidados básicos, muitos jovens não aprendem a ler e a escrever porque enxergam ou ouvem mal

UM MAGNÍFICO exemplo da combinação entre miséria e incompetência pública é a saúde dos alunos da rede municipal de São Paulo. Atenção, candidatos: esse fato, quase desconhecido, ajuda a entender por que no Brasil os estudantes têm tanta dificuldade de aprender e tanta facilidade de cair na marginalidade, engrossando o clima de violência.
A Secretaria Municipal da Educação constatou que os alunos sofrem dos seguintes problemas:
1) abaixo dos dois anos de idade, 54% têm anemia de ferro. Em média, até os sete anos de idade, a taxa é de 28%. Esse problema se traduz em cansaço crônico e dificuldade de concentração;
2) 20% apresentam algum tipo de verminose;
3) 10% têm deficiência visual;
4) 59% apresentam lesões bucais e cáries.
Mais do que a saúde dos estudantes da cidade mais rica do país -paradoxalmente um centro mundial de medicina- o que chama a atenção é a obviedade de que essas doenças são facilmente tratáveis. Bastaria apenas que as redes públicas de saúde, educação e assistência social trabalhassem em conjunto, sem que se gastasse quase nada a mais.

 

O resultado é que, por falta de um cuidado básico, milhões de brasileiros não conseguem aprender a ler e a escrever porque enxergam ou ouvem mal. Com o tempo, passam a ser estigmatizados, apontados como relapsos, preguiçosos, vagabundos.
Não falta quem proponha para eles, em nome da excelência acadêmica, a receita mágica da repetência.
Daí a se transformarem em seres raivosos, ressentidos, é apenas um pulo.
Se temos de discutir com um mínimo de profundidade as questões da violência e da educação, somos obrigados a encarar como imprescindível o atendimento integral às crianças e adolescentes, a começar das creches. Mas não é o que se vê no discurso de nenhum dos candidatos; é mais fácil, afinal, falar na repressão.
O criminoso inicia sua formação na família, avança na escola, é estimulado na rua e se aperfeiçoa na prisão -essa é a cadeia que deve ser rompida.
 

Na coluna anterior, relatei o caso do Jardim Ângela, um conglomerado de favelas da zona sul paulistana, onde a taxa de assassinatos caiu 75%. Nesta semana, o "Financial Times" apontou Diadema, que já foi a cidade campeã de violência no Estado de São Paulo, como um exemplo de solução metropolitana, apesar da escassez de recursos.
Jardim Ângela e Diadema implementaram programas articulados sociais e policiais, a partir da mobilização comunitária -e, só por isso, reduziram rapidamente seus índices de criminalidade.
Em ambos os lugares, a atitude educativa foi o que deu sentido às ações. Educaram-se os policiais a entender a comunidade e educou-se a comunidade a entender os policiais. Lançaram-se programas para jovens em liberdade assistida e ofereceram-se atividades culturais, como o rap e o grafite, complementares à escola.
 

Os especialistas falam e ninguém duvida de que uma das maneiras de enfrentar o PCC é usar a inteligência policial: ou seja, obter mais e melhores informações, saber como e quando usá-las, além de integrar várias repartições oficiais.
Casos como o de Diadema revelam o poder da inteligência social, a capacidade de, usando poucos recursos, encontrar soluções, tirando o máximo proveito do que está disponível.
 

Só uma extrema burrice administrativa explica por que uma cidade tão rica como São Paulo, sede de hospitais mundialmente elogiados e de sofisticadas pesquisas em genética, consegue ter tantos estudantes com anemia de ferro e verminoses.
Se isso explica os indicadores educacionais paulistanos abaixo dos de quase todas as capitais nordestinas -perdem de longe para Teresina- também dá uma dica sobre como produzimos o desemprego juvenil e a mão-de-obra tão abundante para o PCC.
 

A verdade é que burrice também mata.
 

P.S. - Ainda é pouco, mas vale a pena prestar atenção em uma parceria que se inicia, nesta semana, entre as secretarias municipais da Educação e da Saúde, numa das regiões mais pobres de São Paulo. Estudantes da Faculdade Medicina da Unisa irão ensinar professores da rede pública a detectar doenças e vão ajudar a cuidar dos alunos, encaminhando-os a centros de saúde e hospitais.
Além de ajudarem a comunidade, os universitários têm uma chance de aprendizado de saúde pública.
gdimen@uol.com.br


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