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MOACYR SCLIAR
Patroa, empregada
Atriz nata, vivia sem qualquer dificuldade o papel da ricaça que vai as compras. Era absolutamente convincente
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A aventura da falsa socialite que por sete meses se apresentou como a fina Kelly
Tranchesi no circuito de luxo de São
Paulo terminou com sua prisão e a revelação de que ela é, na verdade, Kelly Samara Carvalho dos Santos, 19, autora de golpes e furtos no Brooklin, na Vila Olímpia, no Itaim Bibi e nos Jardins, como ela
própria confessou.
Na loja Vide Bula, na rua da Consolação,
armou um circo e tanto, segundo relato
de uma vendedora. Ligou antes dizendo
ser "empregada da Kelly Tranchesi" e
avisando que a "patroa" iria "comprar
muito" e que, então, deveria ser muito
bem tratada.
De acordo com a funcionária, ela chegou
à loja dez minutos depois do telefonema,
vestida com roupas de marca, tratando a
todos muito mal e com a mesma voz da
"empregada". O apreço por grifes é traduzido em suas comunidades do Orkut:
Diesel, Scuderia Ferrari, Sttutgart Porsche, Eu Uso Emporio Armani ou Quero
uma Ferrari Pink.
Cotidiano, 23 de agosto.
PENSANDO BEM , poderia ter sido uma carreira brilhante,
destas que levam a pessoa ao
"jet set" internacional. Inteligência
e talento não lhe faltavam. Se houvesse um Oscar da vigarice, ela certamente o ganharia (ou, no mínimo,
roubaria a estatueta). Mas mesmo
os gênios cometem erros. Erros que
às vezes se provam fatais.
Foi o que descobriu quando dirigiu-se à elegante loja da rua da Consolação para comprar roupas. Coisa
que já tinha feito muitas vezes antes,
e sem problemas.
Atriz nata, vivia sem qualquer dificuldade o papel da ricaça que vai as
compras. Era absolutamente convincente, inclusive quando pagava
as compras com cartões de crédito
ou cheques roubados.
Nesse dia, porém, ela resolveu
acrescentar um "plus" à performance. Antes de ir à loja, telefonou, identificou-se como a empregada de
Kelly Tranchesi. Minha patroa vai aí
fazer compras, anunciou, e pretende
gastar muito, tratem-na bem. Desligou e dirigiu-se até a loja, onde, como esperava, foi recebida com especial deferência -deferência que retribuiu insultando as vendedoras:
milionárias não têm a obrigação da
gentileza. Notou então que uma delas a fitava com estranheza. Irritada,
quis saber a razão disso. A moça hesitou, mas acabou contando: fora ela
quem atendera a suposta empregada ao telefone:
- E uma coisa me chamou a atenção: ela fala igualzinho à senhora.
Até a voz é parecida...
Uma observação que, claro, perturbou-a. Mas, artista da transgressão que era, rapidamente recuperou-se: verdade, disse, a moça falava
igual a ela. Coisa que não ocorria por
acaso. A empregada tinha tal veneração pela patroa que a imitava em
tudo, inclusive na voz. Um exemplo
de fidelidade, portanto.
A explicação, contudo, não foi
convincente. Já na cadeia deu-se
conta do erro, que sem dúvida colaborara para sua prisão. Agora: quem
era a culpada por esse erro? A empregada, claro, aquela metida que se
atrevia a imitar a própria patroa. Ali
mesmo decidiu: assim que eu sair
daqui vou despedir aquela mulher.
Incompetente comigo não tem vez,
bradou, para quem quisesse ouvir, a
incompetência está acabando com
nosso país.
Um pronunciamento que, tinha
certeza, repercutiria por vários
anos. Ao menos ali na prisão.
MOACYR SCLIAR escreve, às segundas-feiras, um texto
de ficção baseado em notícias publicadas na Folha
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