São Paulo, sexta-feira, 27 de setembro de 2002

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SAÚDE

Desde 1997, 1.399 pessoas morreram à espera de transplantes de fígado em SP

Fila da vida ou da morte?

AURELIANO BIANCARELLI
DA REPORTAGEM LOCAL

A família do gerente de vendas Donizete Aparecido Nascimento, 45, conseguiu uma vitória na noite da última quarta-feira: graças a uma liminar obtida na Justiça, Donizete passou de 15º para o primeiro lugar na fila de transplante de fígado no Estado.
O parecer médico encaminhado ao juiz dizia que ele não resistiria até a chegada de sua vez, o que poderia levar dois meses ou mais.
Salvo em raras exceções, a legislação em vigor não leva em consideração a gravidade do paciente. A liminar quebrou essa ordem. Ontem a Secretaria da Saúde tentava cassar a medida, mas o resultado não importa mais: a equipe do médico Mário Guimarães Pessoa informou à tarde que seu paciente não tem mais condições de receber um transplante.
De 1997 até ontem, 1.399 pessoas morreram na fila de transplante de fígado no Estado de São Paulo. Outras 1.084 conseguiram fazer a operação. Donizete pode ser o 1.400º paciente a morrer antes de conseguir um fígado.
Donizete tem três filhas pequenas e trabalhou até o último dia 6. Está na fila do transplante desde dezembro de 2000, depois de pegar hepatite C numa transfusão de sangue em 1979.
Para o médico Guimarães Pessoa, a "morte anunciada" de Donizete levanta mais uma vez o debate sobre os critérios adotados para a fila do fígado no Brasil. "Estamos cansados de ver pacientes morrendo dessa forma", diz.
Pela legislação de 1998, o critério para receber um fígado é o da posição na lista. Só podem "furar" essa fila pacientes com hepatite fulminante ou que perderem o órgão em seguida ao transplante.
Para quem está próximo ao paciente, trata-se de um critério injusto e cruel. "Como pode alguém, com uma lei, decidir quem vai viver e quem vai morrer?", pergunta Lurdes Lillo do Nascimento, 44, mulher de Donizete.
Para o Ministério da Saúde, responsável pela portaria que estabeleceu a fila única, o critério de chegada ainda é o mais justo (leia texto na página). "Antes da fila única, por mais de 300 vezes eu vi pessoas que podiam mais passarem na frente daquelas que podiam menos", diz Sergio Mies, diretor de transplante da Unidade do Fígado do Hospital Albert Einstein.
Uma situação de injustiça não justifica a outra, diz Guimarães Pessoa, da Clínica Pró-Fígado, hepatologista do Hospital Emílio Ribas e médico de Donizete.
Ele defende os critérios adotados nos EUA, que priorizam o estado de saúde e que estão sendo aperfeiçoados por um sistema conhecido como "Meld", sigla em inglês para "modelo para a doação hepática terminal".
Trata-se de uma equação matemática na qual são cruzados exames laboratoriais do paciente e que resulta numa pontuação de 1 a 40. Os números mais altos indicam a gravidade do paciente e a urgência do transplante.
A própria ABTO (Associação Brasileira de Transplantes de Órgãos), entidade que é referência nessas questões, vem discutindo a mudança de critérios desde o ano passado. Por trás do debate está a questão da confiabilidade e da transparência. Hoje, a posição na fila de órgãos pode ser acompanhada pela internet por pacientes, familiares e médicos.
A questão é que, quando se trata do nível de gravidade do paciente, cada médico tenderá a defender o seu, "o que é natural e compreensível", diz José Medina, presidente da ABTO e professor da Universidade Federal de São Paulo.

Falta captação
Na outras filas, a questão do critério tem menos conflitos. Na do rim, a prioridade depende de uma série de compatibilidades com o doador. Na do coração, a procura e a oferta são bem menores.
Para os médicos, tão importante quanto encontrar critérios mais justos é aumentar as captações de órgãos. Sergio Mies diz que, em São Paulo, apenas um em cada oito órgãos "disponíveis" são informados à Central de Transplantes.
Na capital paulista são captados nove órgãos por milhão de habitantes, quando o número estimado de "disponíveis" chega a 60. Com características de cidade violenta, onde a grande maioria das vítimas é jovem, São Paulo teria uma sobra de "oferta" de órgãos.
Também não faltam equipes. Só no Estado são 25 centros transplantadores, sete vezes mais do que o número recomendado pela Organização Mundial da Saúde.
O que sobra em São Paulo está faltando na resto do país, que soma 15 centros de transplantes, alguns sem nenhuma experiência, diz Mies. No Centro-Oeste e no Norte, não há equipes.
Em São Paulo, a diferença entre o número de órgãos "disponíveis" e de aproveitados estaria na atitude dos médicos e na participação dos hospitais. Desinformados e sem incentivos, eles não se sentem motivados a preservar um "doador potencial" nem a informar à Central de Transplantes. Uma campanha da ABTO e do Ministério da Saúde dirigida aos 270 mil médicos do país está tentando resolver essa questão.
No domingo, uma "marcha" de transplantados no parque Villa Lobos reforçará essa idéia.


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