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SAÚDE
Desde 1997, 1.399 pessoas morreram à espera de transplantes de fígado em SP
Fila da vida ou da morte?
AURELIANO BIANCARELLI
DA REPORTAGEM LOCAL
A família do gerente de vendas
Donizete Aparecido Nascimento,
45, conseguiu uma vitória na noite da última quarta-feira: graças a
uma liminar obtida na Justiça,
Donizete passou de 15º para o primeiro lugar na fila de transplante
de fígado no Estado.
O parecer médico encaminhado
ao juiz dizia que ele não resistiria
até a chegada de sua vez, o que poderia levar dois meses ou mais.
Salvo em raras exceções, a legislação em vigor não leva em consideração a gravidade do paciente.
A liminar quebrou essa ordem.
Ontem a Secretaria da Saúde tentava cassar a medida, mas o resultado não importa mais: a equipe
do médico Mário Guimarães Pessoa informou à tarde que seu paciente não tem mais condições de
receber um transplante.
De 1997 até ontem, 1.399 pessoas morreram na fila de transplante de fígado no Estado de São
Paulo. Outras 1.084 conseguiram
fazer a operação. Donizete pode
ser o 1.400º paciente a morrer antes de conseguir um fígado.
Donizete tem três filhas pequenas e trabalhou até o último dia 6.
Está na fila do transplante desde
dezembro de 2000, depois de pegar hepatite C numa transfusão
de sangue em 1979.
Para o médico Guimarães Pessoa, a "morte anunciada" de Donizete levanta mais uma vez o debate sobre os critérios adotados
para a fila do fígado no Brasil. "Estamos cansados de ver pacientes
morrendo dessa forma", diz.
Pela legislação de 1998, o critério
para receber um fígado é o da posição na lista. Só podem "furar"
essa fila pacientes com hepatite
fulminante ou que perderem o órgão em seguida ao transplante.
Para quem está próximo ao paciente, trata-se de um critério injusto e cruel. "Como pode alguém, com uma lei, decidir quem
vai viver e quem vai morrer?",
pergunta Lurdes Lillo do Nascimento, 44, mulher de Donizete.
Para o Ministério da Saúde, responsável pela portaria que estabeleceu a fila única, o critério de chegada ainda é o mais justo (leia texto na página). "Antes da fila única,
por mais de 300 vezes eu vi pessoas que podiam mais passarem
na frente daquelas que podiam
menos", diz Sergio Mies, diretor
de transplante da Unidade do Fígado do Hospital Albert Einstein.
Uma situação de injustiça não
justifica a outra, diz Guimarães
Pessoa, da Clínica Pró-Fígado, hepatologista do Hospital Emílio Ribas e médico de Donizete.
Ele defende os critérios adotados nos EUA, que priorizam o estado de saúde e que estão sendo
aperfeiçoados por um sistema conhecido como "Meld", sigla em
inglês para "modelo para a doação hepática terminal".
Trata-se de uma equação matemática na qual são cruzados exames laboratoriais do paciente e
que resulta numa pontuação de 1
a 40. Os números mais altos indicam a gravidade do paciente e a
urgência do transplante.
A própria ABTO (Associação
Brasileira de Transplantes de Órgãos), entidade que é referência
nessas questões, vem discutindo a
mudança de critérios desde o ano
passado. Por trás do debate está a
questão da confiabilidade e da
transparência. Hoje, a posição na
fila de órgãos pode ser acompanhada pela internet por pacientes,
familiares e médicos.
A questão é que, quando se trata
do nível de gravidade do paciente,
cada médico tenderá a defender o
seu, "o que é natural e compreensível", diz José Medina, presidente
da ABTO e professor da Universidade Federal de São Paulo.
Falta captação
Na outras filas, a questão do critério tem menos conflitos. Na do
rim, a prioridade depende de uma
série de compatibilidades com o
doador. Na do coração, a procura
e a oferta são bem menores.
Para os médicos, tão importante quanto encontrar critérios mais
justos é aumentar as captações de
órgãos. Sergio Mies diz que, em
São Paulo, apenas um em cada oito órgãos "disponíveis" são informados à Central de Transplantes.
Na capital paulista são captados
nove órgãos por milhão de habitantes, quando o número estimado de "disponíveis" chega a 60.
Com características de cidade violenta, onde a grande maioria das
vítimas é jovem, São Paulo teria
uma sobra de "oferta" de órgãos.
Também não faltam equipes. Só
no Estado são 25 centros transplantadores, sete vezes mais do
que o número recomendado pela
Organização Mundial da Saúde.
O que sobra em São Paulo está
faltando na resto do país, que soma 15 centros de transplantes, alguns sem nenhuma experiência,
diz Mies. No Centro-Oeste e no
Norte, não há equipes.
Em São Paulo, a diferença entre
o número de órgãos "disponíveis" e de aproveitados estaria na
atitude dos médicos e na participação dos hospitais. Desinformados e sem incentivos, eles não se
sentem motivados a preservar um
"doador potencial" nem a informar à Central de Transplantes.
Uma campanha da ABTO e do
Ministério da Saúde dirigida aos
270 mil médicos do país está tentando resolver essa questão.
No domingo, uma "marcha" de
transplantados no parque Villa
Lobos reforçará essa idéia.
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