UOL


São Paulo, segunda-feira, 27 de outubro de 2003

Próximo Texto | Índice

COM TETO, SEM CONDUÇÃO

Mesmo tendo casa, trabalhadores dormem nas vias e em albergues para poupar dinheiro do ônibus

Excluído do transporte vira "morador de rua"


ALENCAR IZIDORO
DA REPORTAGEM LOCAL

O faxineiro Nelson da Silva, 30, tem casa e salário, mas leva a vida de um morador de rua -ao menos de segunda a sexta-feira, quando dorme num albergue da zona sul. Nos finais de semana, mora com a família -mãe, irmãos e sobrinhos- em Itapecerica da Serra, na região metropolitana de São Paulo.
A "escolha" de Silva de passar seis das sete noites da semana numa habitação coletiva, ao lado de desconhecidos, com horário para entrar e sair, regras rígidas para alimentação e convivência, é motivada pela despesa para se deslocar da sua casa ao serviço. "Não sobra para a condução", diz.
Ele trabalha em um condomínio de edifícios a menos de dez minutos, a pé, do albergue. Para obter a vaga de faxineiro -após ficar sete meses desempregado-, afirmou que morava no centro. Por essa razão recebe vale-transporte só para um ônibus municipal -de R$ 1,70. Para ir a Itapecerica da Serra, teria que pegar duas conduções ou um coletivo intermunicipal -que custa R$ 3,00.
"Eu já tinha perdido uma chance de emprego por morar longe, por gastar demais com transporte. Resolvi que completaria a condução com meu salário. Depois vi que não sobrava", conta Silva, que ganha R$ 323 e que desembolsaria 20% de seu rendimento se voltasse diariamente para casa.
Silva faz parte de um contingente de trabalhadores que, embora tenham família e até teto, se misturam aos demais moradores de rua em razão dos custos para se deslocar todos os dias. Não se trata de nenhum grupo dominante entre a população que dorme nas calçadas e albergues. Mas é um fenômeno que tem chamado a atenção de especialistas.
"Não temos ainda como quantificar e não se pode generalizar. Mas não são casos isolados. É um subgrupo que está crescendo", diz Silvia Maria Schor, da Fipe (Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas da USP), que coordenou, há três anos, a mais abrangente pesquisa sobre os moradores de rua na capital paulista e que finalizou, na última semana, a fase de coleta de dados de um novo levantamento, a pedido do governo Marta Suplicy (PT).
Schor conta que, recentemente, identificou casos de moradores de rua "com teto e sem dinheiro para a condução" especialmente entre os catadores de lata e de papelão. Ela lembra do caso de seis homens, residentes em Franco da Rocha (Grande São Paulo), que trabalhavam na Barra Funda durante a semana, dormiam dentro dos carrinhos e só voltavam para casa, juntos, no sábado.
"Eles recolhiam os materiais à noite e dormiam de dia. Economizavam no transporte e ainda aproveitavam a comida oferecida por casas de convivência", diz.
"O centro dá mais possibilidade de sobrevivência. Essa oferta de materiais recicláveis não existe na periferia", explica Walter Varanda, psicólogo que trabalha com população de rua há 15 anos e que coordena a ONG Associação Minha Casa, Minha Rua.
No levantamento feito em 2000, a Fipe apontou a existência de 8.706 moradores de rua em São Paulo, dos quais 42% frequentavam albergues. Mais de 60% trabalhavam em alguma atividade (catador, camelô, pedreiro e carregador, por exemplo) e a renda média mensal atingia R$ 284.
A condição do faxineiro Nelson da Silva faz dele um "excluído do transporte" -expressão usada por especialistas para definir os passageiros potenciais que não usam os coletivos devido à falta de dinheiro e ao preço das tarifas.
De 1995 a 2002, a média de usuários dos ônibus urbanos no país caiu 30%. Em São Paulo, a queda beirou 50%. A principal razão foi a elevação da passagem -que subiu de 28,7% a 62,2% acima da inflação no Plano Real, conforme levantamento da Folha em oito capitais brasileiras.
Essa situação é mais frequente entre desempregados e trabalhadores do setor informal -que não recebem vale-transporte. O pintor Sérgio da Costa, 36, que também vive em situação de rua -já dormiu em calçadas, mas tem ficado em albergues nos últimos três meses- é um deles.
Assim como Silva, Costa tem teto para dormir e renda -mas, por causa do preço da tarifa de ônibus, convive com a família (irmã e sobrinhos), que mora em Osasco (Grande São Paulo), somente nos finais de semana.
"Minha irmã acha uma barbaridade. Pede para eu voltar todo dia. Mas não dá", diz ele, que ganha R$ 400 por mês e que, se quisesse ir à casa da irmã diariamente, gastaria metade de seu salário nos ônibus -são dois por viagem, um de R$ 1,70 e outro de R$ 2,30. "O albergue caiu do céu. Antes, eu cheguei a dormir na rua um mês inteiro por não ter dinheiro pra passagem."
A ex-doméstica Fátima Coutinho Rego, 38, que mora na zona leste e hoje cata papelão no centro para sustentar os seis filhos, diz que nunca havia imaginado a possibilidade de dormir na rua. Sua "estréia" se deu há duas semanas, ao lado da amiga Edna dos Reis Coimbra, 32.
"A gente estava sem dinheiro e não conseguiu vender papelão. Dormimos aqui no chão duro", contou Rego na última quinta-feira, às 20h, apontando para a calçada da rua Barão de Duprat, no centro, enquanto aguardava a perua da igreja Renascer, que entrega sopa aos moradores de rua.
"Foi a primeira vez. O mais comum é a gente ficar em casa por não ter dinheiro nem pra vir aqui catar papelão", completou ela, que, quando faz esse trabalho, arrecada de R$ 10 a R$ 15 num dia -e gasta R$ 3,40 com ônibus.
Marilene Gomes, 48, uma das que também aguardavam a distribuição da sopa, conta que nunca chegou a dormir na rua -mas ela, que sobrevive do material reciclável que recolhe todos os dias, chega a andar duas horas para não gastar com a condução.
Desempregada desde março, Gomes, que já foi auxiliar de telemarketing, entrega seu curriculum duas vezes por semana. Mora num dormitório no Brás (centro), mas já foi à Lapa e à Barra Funda, bairros da zona oeste, e ao Tatuapé (zona leste). Sempre a pé. A última vez que andou de ônibus foi três meses atrás -para disputar uma vaga na cidade de Taboão da Serra, na região metropolitana. "É muito caro para quem está sem emprego", afirma ela.


Próximo Texto: Albergue pode barrar excluído do transporte
Índice


UOL
Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.