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COM TETO, SEM CONDUÇÃO
Mesmo tendo casa, trabalhadores dormem nas vias e em albergues para poupar dinheiro do ônibus
Excluído do transporte vira "morador de rua"
ALENCAR IZIDORO
DA REPORTAGEM LOCAL
O faxineiro Nelson da Silva, 30,
tem casa e salário, mas leva a vida
de um morador de rua -ao menos de segunda a sexta-feira,
quando dorme num albergue da
zona sul. Nos finais de semana,
mora com a família -mãe, irmãos e sobrinhos- em Itapecerica da Serra, na região metropolitana de São Paulo.
A "escolha" de Silva de passar
seis das sete noites da semana numa habitação coletiva, ao lado de
desconhecidos, com horário para
entrar e sair, regras rígidas para
alimentação e convivência, é motivada pela despesa para se deslocar da sua casa ao serviço. "Não
sobra para a condução", diz.
Ele trabalha em um condomínio de edifícios a menos de dez
minutos, a pé, do albergue. Para
obter a vaga de faxineiro -após
ficar sete meses desempregado-,
afirmou que morava no centro.
Por essa razão recebe vale-transporte só para um ônibus municipal -de R$ 1,70. Para ir a Itapecerica da Serra, teria que pegar duas
conduções ou um coletivo intermunicipal -que custa R$ 3,00.
"Eu já tinha perdido uma chance de emprego por morar longe,
por gastar demais com transporte. Resolvi que completaria a condução com meu salário. Depois vi
que não sobrava", conta Silva, que
ganha R$ 323 e que desembolsaria 20% de seu rendimento se voltasse diariamente para casa.
Silva faz parte de um contingente de trabalhadores que, embora
tenham família e até teto, se misturam aos demais moradores de
rua em razão dos custos para se
deslocar todos os dias. Não se trata de nenhum grupo dominante
entre a população que dorme nas
calçadas e albergues. Mas é um fenômeno que tem chamado a
atenção de especialistas.
"Não temos ainda como quantificar e não se pode generalizar.
Mas não são casos isolados. É um
subgrupo que está crescendo", diz
Silvia Maria Schor, da Fipe (Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas da USP), que coordenou, há três anos, a mais abrangente pesquisa sobre os moradores de rua na capital paulista e que
finalizou, na última semana, a fase
de coleta de dados de um novo levantamento, a pedido do governo
Marta Suplicy (PT).
Schor conta que, recentemente,
identificou casos de moradores de
rua "com teto e sem dinheiro para
a condução" especialmente entre
os catadores de lata e de papelão.
Ela lembra do caso de seis homens, residentes em Franco da
Rocha (Grande São Paulo), que
trabalhavam na Barra Funda durante a semana, dormiam dentro
dos carrinhos e só voltavam para
casa, juntos, no sábado.
"Eles recolhiam os materiais à
noite e dormiam de dia. Economizavam no transporte e ainda
aproveitavam a comida oferecida
por casas de convivência", diz.
"O centro dá mais possibilidade
de sobrevivência. Essa oferta de
materiais recicláveis não existe na
periferia", explica Walter Varanda, psicólogo que trabalha com
população de rua há 15 anos e que
coordena a ONG Associação Minha Casa, Minha Rua.
No levantamento feito em 2000,
a Fipe apontou a existência de
8.706 moradores de rua em São
Paulo, dos quais 42% frequentavam albergues. Mais de 60% trabalhavam em alguma atividade
(catador, camelô, pedreiro e carregador, por exemplo) e a renda
média mensal atingia R$ 284.
A condição do faxineiro Nelson
da Silva faz dele um "excluído do
transporte" -expressão usada
por especialistas para definir os
passageiros potenciais que não
usam os coletivos devido à falta de
dinheiro e ao preço das tarifas.
De 1995 a 2002, a média de
usuários dos ônibus urbanos no
país caiu 30%. Em São Paulo, a
queda beirou 50%. A principal razão foi a elevação da passagem
-que subiu de 28,7% a 62,2%
acima da inflação no Plano Real,
conforme levantamento da Folha
em oito capitais brasileiras.
Essa situação é mais frequente
entre desempregados e trabalhadores do setor informal -que
não recebem vale-transporte. O
pintor Sérgio da Costa, 36, que
também vive em situação de rua
-já dormiu em calçadas, mas
tem ficado em albergues nos últimos três meses- é um deles.
Assim como Silva, Costa tem teto para dormir e renda -mas,
por causa do preço da tarifa de
ônibus, convive com a família (irmã e sobrinhos), que mora em
Osasco (Grande São Paulo), somente nos finais de semana.
"Minha irmã acha uma barbaridade. Pede para eu voltar todo
dia. Mas não dá", diz ele, que ganha R$ 400 por mês e que, se quisesse ir à casa da irmã diariamente, gastaria metade de seu salário
nos ônibus -são dois por viagem, um de R$ 1,70 e outro de R$
2,30. "O albergue caiu do céu. Antes, eu cheguei a dormir na rua
um mês inteiro por não ter dinheiro pra passagem."
A ex-doméstica Fátima Coutinho Rego, 38, que mora na zona
leste e hoje cata papelão no centro
para sustentar os seis filhos, diz
que nunca havia imaginado a
possibilidade de dormir na rua.
Sua "estréia" se deu há duas semanas, ao lado da amiga Edna
dos Reis Coimbra, 32.
"A gente estava sem dinheiro e
não conseguiu vender papelão.
Dormimos aqui no chão duro",
contou Rego na última quinta-feira, às 20h, apontando para a calçada da rua Barão de Duprat, no
centro, enquanto aguardava a perua da igreja Renascer, que entrega sopa aos moradores de rua.
"Foi a primeira vez. O mais comum é a gente ficar em casa por
não ter dinheiro nem pra vir aqui
catar papelão", completou ela,
que, quando faz esse trabalho, arrecada de R$ 10 a R$ 15 num dia
-e gasta R$ 3,40 com ônibus.
Marilene Gomes, 48, uma das
que também aguardavam a distribuição da sopa, conta que nunca
chegou a dormir na rua -mas
ela, que sobrevive do material reciclável que recolhe todos os dias,
chega a andar duas horas para
não gastar com a condução.
Desempregada desde março,
Gomes, que já foi auxiliar de telemarketing, entrega seu curriculum duas vezes por semana. Mora
num dormitório no Brás (centro),
mas já foi à Lapa e à Barra Funda,
bairros da zona oeste, e ao Tatuapé (zona leste). Sempre a pé. A última vez que andou de ônibus foi
três meses atrás -para disputar
uma vaga na cidade de Taboão da
Serra, na região metropolitana. "É
muito caro para quem está sem
emprego", afirma ela.
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