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São Paulo, segunda-feira, 27 de outubro de 2003

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MOACYR SCLIAR

Alma-irmã

Americana é condenada por invadir e-mail de ex-mulher do marido. Angel Lee, 28 anos, do Estado do Arizona, foi condenada a 60 dias de prisão domiciliar por invadir o e-mail da ex-mulher de seu marido. Folha Online, 20.out.2003

Durante muito tempo, A. tentou entender o marido. Missão impossível: o homem não falava. Limitava-se a responder por monossílabos às perguntas que A. constantemente, e ansiosamente, lhe fazia. Não que fosse indelicado, isso não. Mas era fechado. Fechadíssimo. Dava para descobrir alguma coisa de seu trabalho (absolutamente desinteressante), de sua saúde (nenhum problema relevante), e só. Terminado o jantar, a única refeição que fazia em casa, assistia TV ou sentava ao computador; às 11 horas ia para a cama. Às vezes faziam amor. No que ele era também contido; parecia estar cumprindo uma obrigação. Enfim: o silêncio reinava na casa. À qual faltava o bulício das crianças: não tinham filhos.
Esse homem fora casado. Disso não falava, mas A. queria, sim, saber a respeito. Talvez o passado casamento servisse como fio condutor para que se orientasse naquele escuro labirinto, a mente do marido. Seria importante encontrar a ex-mulher, trocar idéias com ela -mas como? Não a conhecia, não sabia onde morava, e o marido, claro, não daria nenhuma indicação a respeito.
Uma noite, vendo-o trabalhar no computador, A. teve uma idéia. Seguramente os dois haviam trocado e-mails; ele era fanático por esse tipo de comunicação. E o e-mail poderia representar o acesso à misteriosa personagem.
No dia seguinte ligou o computador do marido e, de fato, lá estava o e-mail da ex-mulher, no qual A., que conhecia alguma coisa de informática, não teve dificuldade em entrar. E aí se surpreendeu com as mensagens. Longas mensagens, muito mais longas do que os sintéticos e-mails habituais. E muito reveladoras. O que estava ali era a história de uma paixão. Como a própria A., a ex-mulher queixava-se dos silêncios daquele que era, então, seu esposo. Mas perdoava tais silêncios e pedia licença para expressar, por e-mail, os seus sentimentos. Uma torrente de emoção fluía através daquelas palavras.
De início A. reagiu com ciúmes. Mas depois, relendo a caudalosa correspondência, mudou de idéia. Não, a outra não era uma rival. A outra era uma alma-irmã. Uma terna afeição pela desconhecida foi nela crescendo. Algo que poderia ser chamado de -amor? É. De amor. Preciso encontrá-la, decidiu. Peciso conhecê-la melhor.
Mas aí foi descoberta. Aí foi denunciada, aí o caso foi parar na polícia. Era o seu destino, afinal: lutar, em vão, pelo amor. A. era uma angustiada voz clamando no deserto da indiferença e da incompreensão, um deserto no qual não havia sequer internet.


Moacyr Scliar escreve às segundas-feiras, nesta coluna, um texto de ficção baseado em matérias publicadas no jornal.


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