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MOACYR SCLIAR
Alma-irmã
Americana é condenada por invadir
e-mail de ex-mulher do marido. Angel Lee, 28 anos, do Estado do Arizona, foi condenada a 60 dias de prisão
domiciliar por invadir o e-mail da
ex-mulher de seu marido. Folha
Online, 20.out.2003
Durante muito tempo, A.
tentou entender o marido.
Missão impossível: o homem não
falava. Limitava-se a responder
por monossílabos às perguntas
que A. constantemente, e ansiosamente, lhe fazia. Não que fosse indelicado, isso não. Mas era fechado. Fechadíssimo. Dava para descobrir alguma coisa de seu trabalho (absolutamente desinteressante), de sua saúde (nenhum
problema relevante), e só. Terminado o jantar, a única refeição
que fazia em casa, assistia TV ou
sentava ao computador; às 11 horas ia para a cama. Às vezes faziam amor. No que ele era também contido; parecia estar cumprindo uma obrigação. Enfim: o
silêncio reinava na casa. À qual
faltava o bulício das crianças: não
tinham filhos.
Esse homem fora casado. Disso
não falava, mas A. queria, sim,
saber a respeito. Talvez o passado
casamento servisse como fio condutor para que se orientasse naquele escuro labirinto, a mente do
marido. Seria importante encontrar a ex-mulher, trocar idéias
com ela -mas como? Não a conhecia, não sabia onde morava, e
o marido, claro, não daria nenhuma indicação a respeito.
Uma noite, vendo-o trabalhar
no computador, A. teve uma
idéia. Seguramente os dois haviam trocado e-mails; ele era fanático por esse tipo de comunicação. E o e-mail poderia representar o acesso à misteriosa personagem.
No dia seguinte ligou o computador do marido e, de fato, lá estava o e-mail da ex-mulher, no
qual A., que conhecia alguma coisa de informática, não teve dificuldade em entrar. E aí se surpreendeu com as mensagens.
Longas mensagens, muito mais
longas do que os sintéticos e-mails
habituais. E muito reveladoras. O
que estava ali era a história de
uma paixão. Como a própria A.,
a ex-mulher queixava-se dos silêncios daquele que era, então,
seu esposo. Mas perdoava tais silêncios e pedia licença para expressar, por e-mail, os seus sentimentos. Uma torrente de emoção
fluía através daquelas palavras.
De início A. reagiu com ciúmes.
Mas depois, relendo a caudalosa
correspondência, mudou de idéia.
Não, a outra não era uma rival. A
outra era uma alma-irmã. Uma
terna afeição pela desconhecida
foi nela crescendo. Algo que poderia ser chamado de -amor? É.
De amor. Preciso encontrá-la, decidiu. Peciso conhecê-la melhor.
Mas aí foi descoberta. Aí foi denunciada, aí o caso foi parar na
polícia. Era o seu destino, afinal:
lutar, em vão, pelo amor. A. era
uma angustiada voz clamando
no deserto da indiferença e da incompreensão, um deserto no qual
não havia sequer internet.
Moacyr Scliar escreve às segundas-feiras, nesta coluna, um texto de ficção baseado em matérias publicadas no jornal.
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