São Paulo, sábado, 27 de outubro de 2007

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WALTER CENEVIVA

Dever judicial mal compreendido


O grampo imprudente gera conseqüências tão graves quanto as do delito a cuja descoberta se destina

AGENTES PÚBLICOS têm reclamado contra restrições ao seu trabalho. Vêem, no que chamam de restrições, geralmente oriundas do Poder Judiciário, limites ao estrito cumprimento de seus deveres legais, segundo dizem. São queixas do Legislativo e do Executivo. Neste, os reclamadores mais numerosos são das polícias e dos agentes tributários. O mesmo se dá com outros segmentos da atividade pública, mas, com freqüência, para desculpar deficiências de seus serviços.
A semana mostrou grampos autorizados por juízes -terá havido cautela na permissão?- que facilitaram crimes cometidos por agentes públicos contra seus investigados. Incluíram a corrupção passiva e a extorsão (Código Penal, arts. 317 e 158, em sua forma agravada). O grampo imprudentemente deferido gera conseqüências tão graves quanto as do delito a cuja descoberta se destina.
Há quem reclame maiores poderes de intervenção para agentes públicos. Se fossem atendidos, logo teríamos de repetir a pergunta: quem fiscalizará os fiscais, contra os abusos? Nunca é demais lembrar dois exemplos clássicos. O poeta Percy Shelley (1792-1822) escreveu, creio que em seus anos passados na Itália, mais ou menos o seguinte: o poder é um mal poluente de tudo o que toca. Afasta toda seriedade, virtude, liberdade e verdade. Lord Acton (1834-1902), moralista e historiador, é autor da frase célebre: "Todo poder tende a corromper; o poder absoluto corrompe absolutamente". Se houver abusos no exemplo brasileiro, só a ação dos bons juízes preservará o Estado Democrático de Direito.
Não se pode, porém, pretender uma judicialização da política e da administração. É desejável que o sistema de verificações de condutas passe por mais de um filtro. Serve de exemplo, visto ao contrário, a crítica feita aos tribunais, por mais de uma fonte, relativa a gastos ditos excessivos para construção de sedes. É preciso manter olhos abertos para eles.
O mesmo ocorreu com os mecanismos de controle externo da magistratura e do Ministério Público. O Ministério Público tem, contudo, a vantagem de contar com sua defesa bem acolhida pela mídia, pois as atividades desse órgão, assim como acontece com as polícias, dão boas matérias, "vendem" informação de interesse geral, ainda que distorcida por declarações imprudentes, mal verificadas.
Situações gravíssimas para a liberdade individual não despertam o mesmo interesse. Serve de exemplo uma certa cerimônia na crítica à desconsideração ilimitada da personalidade jurídica, em sentenças judiciais nas cobranças de direito privado, mediante simples ordem, emitida pelo magistrado ao banco, para bloqueios de contas, em nome de pessoas físicas, que administrem empresas.
Tem havido casos em que a pessoa física é empregada da pessoa jurídica e esta deixa de pagar algum tributo. O juiz manda, com abuso de poder, bloquear a conta do administrador, ainda que apenas empregado da empresa devedora. Isso prepondera na Justiça do Trabalho, mas não é estranho à Justiça Civil. Fere a segurança jurídica, bem precioso que o excesso de poder do agente público ameaça. Poder e abuso são vinhos da mesma pipa. Embriagam. Sem o juiz, o direito perece. Com o dever dele mal compreendido, o dano é irreparável.


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