São Paulo, segunda-feira, 27 de novembro de 2006

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MOACYR SCLIAR

Refrescando a memória amorosa


"Amar a mim mesmo" era o que deveria ter constado no topo da lista, de todas as listas ao longo da sua vida


"Vou começar a me amar", diz seqüestrador do ônibus no Rio. O vigilante desempregado André Luiz Ribeiro da Silva, 35, que seqüestrou o ônibus 499 em Nova Iguaçu (Baixada Fluminense), pediu desculpas à família e aos passageiros e disse estar arrependido. "Vou começar a me amar. Eu amava muito minha mulher e meus filhos e esqueci de me amar", disse ao chegar ao IML (Instituto Médico Legal), para fazer exame de corpo de delito. Cotidiano, 14 de novembro

TUDO COMEÇOU quando, naquela manhã, terminou de escrever a lista das tarefas para o dia. Uma prática que ele, homem metódico e determinado, nunca deixava de fazer. À noite relia a lista e, com imenso prazer, riscava as coisas que tinha feito -todas, em geral. O que lhe dava a gloriosa sensação do dever cumprido.
Mas, naquela manhã, sentia-se estranhamente inquieto com a lista. Era como se tivesse esquecido de anotar algo -mas o quê, exatamente? O que tinha esquecido? Ainda intrigado, foi tomar café. E aí, ao ler o jornal, deu-se conta do que estava faltando. Era uma notícia sobre o seqüestrador do ônibus 499, no Rio. O homem queixava-se: "Eu amava muito minha mulher e meus filhos e esqueci de me amar".
Fez-se a luz: era exatamente aquilo que ele havia olvidado: de se amar. "Amar a mim mesmo" era a frase que deveria ter constado no topo da lista, de todas as listas que ele fizera ao longo da vida. Mas, por que esquecera disso? Por que esquecera de se amar?
A resposta, como no caso do seqüestrador, era óbvia: distraíra-se dando atenção aos outros, à mulher, aos filhos (agora adultos e morando em outra cidade), aos funcionários da empresa que dirigia, aos clientes, aos amigos. Amava todo mundo, menos a si próprio. E era por isso que o espelho lhe mostrava a imagem de um homem triste, amargurado.
Ah, mas aquilo não poderia ficar assim. Teria de tomar alguma providência, e de imediato. Começaria a se amar naquele dia mesmo, naquela manhã. Para isso, teria de tomar providências semelhantes àquelas adotadas pelo seqüestrador. Começando pela mulher. Continuavam casados, mas ele achava que ela tratava-o mal, no mínimo com indiferença. Ali estava, pois, o ponto de partida para sua carência emocional, para a lacuna que notara em sua memória amorosa.
Entrou no quarto, onde a mulher ainda dormia, e sem maiores explicações foi-lhe aplicando umas bofetadas, tal como fizera o seqüestrador. Ela, apavorada, gritava, sem entender. Mas ele se sentia muito melhor. Já estava se amando, constatava, emocionado. Já estava se apaixonando por si próprio.
O plano era repetir a dose todas as manhãs, até que seu coração transbordasse de amor. Esperava que a esposa compreendesse e que o ajudasse neste delicado e complexo transe. Mas ela não quis nem saber: olho roxo, nariz sangrando, deixou o apartamento e foi-se refugiar na casa de uma amiga. Atualmente está pedindo o divórcio.
Quanto a ele, não esqueceu o importante item da lista: continua decidido a se amar. Só falta achar alguém a quem possa espancar com aquele vigor que a incontida paixão dá a seres humanos.


MOACYR SCLIAR escreve, às segundas-feiras, um texto de ficção baseado em notícias publicadas na Folha


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