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MOACYR SCLIAR
Refrescando a memória amorosa
"Amar a mim mesmo" era o que deveria ter constado no topo da lista, de todas as listas ao longo da sua vida
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"Vou começar a me amar", diz seqüestrador do ônibus no Rio. O vigilante desempregado André Luiz Ribeiro da Silva,
35, que seqüestrou o ônibus 499 em Nova Iguaçu (Baixada Fluminense), pediu
desculpas à família e aos passageiros e
disse estar arrependido. "Vou começar a
me amar. Eu amava muito minha mulher e meus filhos e esqueci de me amar",
disse ao chegar ao IML (Instituto Médico Legal), para fazer exame de corpo de
delito. Cotidiano, 14 de novembro
TUDO COMEÇOU quando, naquela manhã, terminou de escrever a lista das tarefas para
o dia. Uma prática que ele, homem
metódico e determinado, nunca deixava de fazer. À noite relia a lista e,
com imenso prazer, riscava as coisas
que tinha feito -todas, em geral. O
que lhe dava a gloriosa sensação do
dever cumprido.
Mas, naquela manhã, sentia-se estranhamente inquieto com a lista.
Era como se tivesse esquecido de
anotar algo -mas o quê, exatamente? O que tinha esquecido? Ainda intrigado, foi tomar café. E aí, ao ler o
jornal, deu-se conta do que estava
faltando. Era uma notícia sobre o seqüestrador do ônibus 499, no Rio. O
homem queixava-se: "Eu amava
muito minha mulher e meus filhos e
esqueci de me amar".
Fez-se a luz: era exatamente aquilo que ele havia olvidado: de se amar.
"Amar a mim mesmo" era a frase
que deveria ter constado no topo da
lista, de todas as listas que ele fizera
ao longo da vida. Mas, por que esquecera disso? Por que esquecera de
se amar?
A resposta, como no caso do
seqüestrador, era óbvia: distraíra-se
dando atenção aos outros, à mulher,
aos filhos (agora adultos e morando
em outra cidade), aos funcionários
da empresa que dirigia, aos clientes,
aos amigos. Amava todo mundo,
menos a si próprio. E era por isso
que o espelho lhe mostrava a
imagem de um homem triste, amargurado.
Ah, mas aquilo não poderia ficar
assim. Teria de tomar alguma providência, e de imediato. Começaria a
se amar naquele dia mesmo, naquela manhã. Para isso, teria de tomar
providências semelhantes àquelas
adotadas pelo seqüestrador. Começando pela mulher. Continuavam
casados, mas ele achava que ela tratava-o mal, no mínimo com indiferença. Ali estava, pois, o ponto de
partida para sua carência emocional, para a lacuna que notara em sua
memória amorosa.
Entrou no quarto, onde a mulher
ainda dormia, e sem maiores explicações foi-lhe aplicando umas bofetadas, tal como fizera o seqüestrador. Ela, apavorada, gritava, sem entender. Mas ele se sentia muito melhor. Já estava se amando, constatava, emocionado. Já estava se apaixonando por si próprio.
O plano era repetir a dose todas as
manhãs, até que seu coração transbordasse de amor. Esperava que a
esposa compreendesse e que o ajudasse neste delicado e complexo
transe. Mas ela não quis nem saber:
olho roxo, nariz sangrando, deixou o
apartamento e foi-se refugiar na casa de uma amiga. Atualmente está
pedindo o divórcio.
Quanto a ele, não esqueceu o importante item da lista: continua decidido a se amar. Só falta achar alguém a quem possa espancar com
aquele vigor que a incontida paixão
dá a seres humanos.
MOACYR SCLIAR escreve, às segundas-feiras, um texto
de ficção baseado em notícias publicadas na Folha
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