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PASQUALE CIPRO NETO
"Aquelas suas mínimas ações (...), côa-as..."
A complexidade e a densidade do pensamento de Fernando Pessoa impõem estrutura igualmente complexa e densa
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NA SEMANA PASSADA, trocamos
duas palavras sobre um trecho de "Crônica da Vida que
Passa", de Fernando Pessoa.
Volto ao excerto pessoano, por
causa desta passagem: "O homem
que se torna célebre fica sem vida íntima: tornam-se de vidro as paredes
da sua vida doméstica; é sempre como se fosse excessivo o seu traje; e
aquelas suas mínimas ações-ridiculamente humanas às vezes- que
ele quereria invisíveis, côa-as a lente
da celebridade para espetaculosas
pequenezes, com cuja evidência a
sua alma se estraga ou se enfastia".
Eu tinha certeza de que os leitores
gostariam de comentários sobre o
circunflexo de "côa" ("côa-as a lente"), mas o espaço não me permitiu
ir além do que fui. Batata: vários leitores pediram essas explicações.
Parece cabível incluir toda a estrutura de que fazem parte a forma verbal "côa" e o oblíquo "as" ("côa-as").
Peço-lhe, pois, que volte ao segundo
parágrafo e que responda: que termo esse "as" representa? Ele substitui o bloco "aquelas suas mínimas
ações", complemento de "côa".
Como se vê, Pessoa não empregou
a ordem direta; se a tivesse empregado, teríamos mais ou menos isto:
"...e a lente da celebridade côa aquelas suas mínimas ações...". Melhor
parar: com a ordem direta, nem de
longe se chegaria à expressividade
com a qual o Mestre tingiu seu pensamento, cuja complexidade e densidade impõem estrutura lingüística
igualmente complexa e densa.
Ao deslocar para o início a expressão "aquelas suas mínimas ações",
Pessoa resolve vários problemas de
uma vez. Consegue, por exemplo,
encaixar na melhor posição possível
as expressões "para espetaculosas
pequenezes" e "com cuja evidência a
sua alma se estraga ou se enfastia".
Tente escrever a frase toda na ordem direta e veja como será difícil
concertar tudo isso (sim, concertar,
com "c", ou seja, harmonizar).
Com a ordem adotada, Pessoa
consegue também enfatizar o complemento da forma verbal "côa", que
acaba ocorrendo duas vezes (no
"original" -a expressão "aquelas
suas mínimas ações"-, e no "repeteco", por meio do pronome "as").
Bem, ainda não falamos do circunflexo de "côa", que, diferentemente do que talvez tenham pensado alguns, não ocorre por fidelidade
à grafia vigente no tempo de Pessoa.
Esse acento emana do sistema ortográfico atual, que vigora desde os
anos 40. Trata-se de um dos acentos
diferenciais previstos na "Observação 1ª" da 14ª regra de acentuação
(do "Formulário Ortográfico").
Na verdade, o "Formulário" não
cita explicitamente o caso de "côas"
e "côa" (do verbo "coar"), diferenciadas, pelo acento, das formas átonas
"coas" e "coa", resultantes de "com"
+ "a/s", respectivamente ("...falando
baixinho, coa voz tremente..." -de
Afonso Arinos, citado no "Aurélio"). O que se diz é o seguinte:
"Emprega-se também o acento circunflexo para distinguir de certos
homógrafos inacentuados as palavras que têm e ou o fechados". A lista de exemplos inclui "pôr" e "por",
"pêlo" e "pelo" etc., mas não cita
"côa/s" e "coa/s", que, por analogia, se enquadram no mesmo caso.
O diabo é que, enquanto o acento
de "pôr" e o de "pêlo" se justificam
("Vou por aqui" é bem diferente de
"Vou pôr aqui"), o de "côa/s" é uma
bobagem. Mas está na regra. É isso.
inculta@uol.com.br
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