São Paulo, quinta-feira, 27 de dezembro de 2007

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

PASQUALE CIPRO NETO

"Aquelas suas mínimas ações (...), côa-as..."


A complexidade e a densidade do pensamento de Fernando Pessoa impõem estrutura igualmente complexa e densa

NA SEMANA PASSADA, trocamos duas palavras sobre um trecho de "Crônica da Vida que Passa", de Fernando Pessoa.
Volto ao excerto pessoano, por causa desta passagem: "O homem que se torna célebre fica sem vida íntima: tornam-se de vidro as paredes da sua vida doméstica; é sempre como se fosse excessivo o seu traje; e aquelas suas mínimas ações-ridiculamente humanas às vezes- que ele quereria invisíveis, côa-as a lente da celebridade para espetaculosas pequenezes, com cuja evidência a sua alma se estraga ou se enfastia".
Eu tinha certeza de que os leitores gostariam de comentários sobre o circunflexo de "côa" ("côa-as a lente"), mas o espaço não me permitiu ir além do que fui. Batata: vários leitores pediram essas explicações. Parece cabível incluir toda a estrutura de que fazem parte a forma verbal "côa" e o oblíquo "as" ("côa-as").
Peço-lhe, pois, que volte ao segundo parágrafo e que responda: que termo esse "as" representa? Ele substitui o bloco "aquelas suas mínimas ações", complemento de "côa".
Como se vê, Pessoa não empregou a ordem direta; se a tivesse empregado, teríamos mais ou menos isto: "...e a lente da celebridade côa aquelas suas mínimas ações...". Melhor parar: com a ordem direta, nem de longe se chegaria à expressividade com a qual o Mestre tingiu seu pensamento, cuja complexidade e densidade impõem estrutura lingüística igualmente complexa e densa.
Ao deslocar para o início a expressão "aquelas suas mínimas ações", Pessoa resolve vários problemas de uma vez. Consegue, por exemplo, encaixar na melhor posição possível as expressões "para espetaculosas pequenezes" e "com cuja evidência a sua alma se estraga ou se enfastia".
Tente escrever a frase toda na ordem direta e veja como será difícil concertar tudo isso (sim, concertar, com "c", ou seja, harmonizar).
Com a ordem adotada, Pessoa consegue também enfatizar o complemento da forma verbal "côa", que acaba ocorrendo duas vezes (no "original" -a expressão "aquelas suas mínimas ações"-, e no "repeteco", por meio do pronome "as").
Bem, ainda não falamos do circunflexo de "côa", que, diferentemente do que talvez tenham pensado alguns, não ocorre por fidelidade à grafia vigente no tempo de Pessoa.
Esse acento emana do sistema ortográfico atual, que vigora desde os anos 40. Trata-se de um dos acentos diferenciais previstos na "Observação 1ª" da 14ª regra de acentuação (do "Formulário Ortográfico").
Na verdade, o "Formulário" não cita explicitamente o caso de "côas" e "côa" (do verbo "coar"), diferenciadas, pelo acento, das formas átonas "coas" e "coa", resultantes de "com" + "a/s", respectivamente ("...falando baixinho, coa voz tremente..." -de Afonso Arinos, citado no "Aurélio"). O que se diz é o seguinte: "Emprega-se também o acento circunflexo para distinguir de certos homógrafos inacentuados as palavras que têm e ou o fechados". A lista de exemplos inclui "pôr" e "por", "pêlo" e "pelo" etc., mas não cita "côa/s" e "coa/s", que, por analogia, se enquadram no mesmo caso.
O diabo é que, enquanto o acento de "pôr" e o de "pêlo" se justificam ("Vou por aqui" é bem diferente de "Vou pôr aqui"), o de "côa/s" é uma bobagem. Mas está na regra. É isso.

inculta@uol.com.br


Texto Anterior: Dona-de-casa viaja 231 km e quase não remarca consulta
Próximo Texto: Trânsito: Trânsito terá esquema especial para Réveillon e São Silvestre
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.