São Paulo, quinta-feira, 28 de fevereiro de 2002

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

PASQUALE CIPRO NETO

Política mosquitária

O s leitores querem saber se a bendita doença que tem derrubado milhares de brasileiros é "a dengue" ou "o dengue". A dúvida decorre da falta de uniformidade no procedimento dos jornais. Salvo engano, a maioria tem usado "a dengue", mas há os que empregam o artigo masculino.
Que dizem nossos dicionários? O de Caldas Aulete, o "Michaelis Melhoramentos" e o "Houaiss" são claros: a palavra é feminina, quando nomeia a doença.
A última edição do "Aurélio" ("Novo Aurélio Século XXI") dá a palavra como masculina, para qualquer de seus significados, mas as edições anteriores da obra desmentem a recente. Nelas, "dengue" aparece como "s.m." (substantivo masculino), quando o sentido é de "denguice", "dengo", "faceirice", "requebro", "birra ou choradeira de criança", "manha" etc., e como feminina, quando nomeia a doença.
Na última edição, deve ter ocorrido simplesmente um cochilo, de que resultou o sumiço do "s.f." antes do sexto significado ("Med. Doença infecciosa produzida por vírus, transmitida pelo...").
É bom que se diga que gênero não se explica, nem tem lógica. É vã qualquer tentativa de justificar o fato de uma palavra ser masculina ou feminina. Não custa lembrar que "sangue" e "leite", por exemplo, são masculinas em português e em italiano, mas são femininas em espanhol. Em italiano, "ponte" é masculina. Não é por acaso que a mais famosa ponte de Florença se chama "Ponte Vecchio" (e não "Vecchia").
Que ninguém se iluda, portanto, com a idéia de que "dengue" é feminina porque é doença. Se esse raciocínio fosse correto, "tíbia" seria masculina, porque é nome de osso. O gênero se fixa pelo uso, e, salvo engano, o uso consagrou "dengue" como termo feminino, quando nomeia a doença.
Os leitores também querem saber se os locutores erram quando dizem "aedes", para nomear o nefando inseto que transmite a doença. "Aedes" vem do latim científico, através do grego, e significa "desagradável", "enjoativo", "nauseante". Diz o querido amigo Odilon Soares Leme, latinista, que a pronúncia romana é "edes", mas a restaurada é "aedes" mesmo. Não há problema, pois, na pronúncia "aedes".
Discussões linguísticas à parte, essa história da dengue tem produzido algumas piadas, a começar pela (maléfica) que envolve o ex-ministro da Saúde José Serra, que, de tão cavalheiro, seria incapaz de matar um mosquito.
Também se discute muito o "nível" do mosquito: municipal, estadual ou federal? A pendenga me trouxe à lembrança "Política Literária", memorável poema de Carlos Drummond de Andrade, publicado em seu primeiro livro ("Alguma Poesia", de 1930) e dedicado a Manuel Bandeira:
"O poeta municipal discute com o poeta estadual qual deles é capaz de bater o poeta federal. Enquanto isso o poeta federal tira ouro do nariz".
Quem foi que disse que a arte imita a vida? É o contrário, meus caros. Está lá, em Drummond, há 72 anos. A diferença é que, no caso da dengue, não se sabe se alguém está tirando ouro do nariz. Sangue, horror e lágrimas, no entanto, não faltam. É isso.


Pasquale Cipro Neto escreve nesta coluna às quintas-feiras.

E-mail - inculta@uol.com.br


Texto Anterior: Anatel diz que só concede licença
Próximo Texto: Pista da Salim Farah Maluf é interditada
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.