São Paulo, domingo, 28 de julho de 2002

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DANUZA LEÃO

A casa do meu avô

Meu avô paterno , que se chamava Herodoto, tinha dois irmãos, Kociusko e Aristóbulo; sua casa era bem diferente da casa da minha avó materna.
Eram também 11 tios e tias, mas todos nervosos, desobedientes, brigões e barulhentos. Falavam alto, discutiam e davam grandes gargalhadas - tudo ao mesmo tempo. Depois que a minha avó morreu, meu avô se casou de novo; os três filhos do primeiro casamento odiavam a madrasta, é claro, e eram correspondidos com intensidade, coisas de uma família normal. Sendo assim, seus enteados - entre eles meu pai - tinham muita liberdade: para fazer e sobretudo para pensar.
Todos adoravam comer e, como a casa era perto do mar, havia sempre grandes peixadas, muito mexilhão, muito camarão de rio e de mar e muita lagosta. No quintal, um canteiro só de pimenta malagueta, e a família se fartava. Comia-se macarrão com pimenta, ovo frito com pimenta, pão com pimenta, sempre tirada na hora, do pé -em conserva, nem pensar. A pimenta era amassada com a faca e espalhada sobre o que se ia comer. Todo mundo saía da mesa fungando, e meu avô dizia: "Se não chorar, não vale". Os mais velhos, quando iam à casa de outros parentes, levavam pimentas num vidrinho, para o que desse e viesse.
No quintal, um monte de galinhas soltas, e também um galo grande, lindo, de penas ruivas, e um galinho garnisé branco. A primeira percepção de vida que senti -sem entender- foi quando segurei pela primeira vez um ovo que a galinha tinha acabado de botar. O ovo era quente, mas um quente diferente, perturbador; um quente vivo.
Havia uma mangueira e os mais novos amarravam um saquinho na ponta de uma vara para tirar as mangas ainda verdes; as frutas eram massageadas para que parecessem maduras e vendidas numa rua longe da casa -espertos, os meninos. Quando se comia galinha, o que era raro, era ao molho pardo, e a garotada não perdia a cena, com direito a muito cacarejo e muito sangue. A briga na mesa era pela moela, o objeto de desejo de todos. O pescoço era jogado para um cachorro vira-lata que não não tinha dono e sempre aparecia para descolar alguma sobra de comida. Ah, na casa desse meu avô nunca se falou em religião nem nunca ninguém foi à missa.
Lá não havia muita disciplina; a madrasta de meu pai não conseguia mandar nos que não eram seus filhos e, como os dela queriam fazer o que os meio-irmãos faziam, o resultado era uma confusão permanente. Um dia, a família resolveu se mudar e, quando chegaram à casa nova e contaram, notaram que faltava uma criança; foi preciso voltar para buscá-la.
Quando meu avô ficou tuberculoso, o médico recomendou uma cidade de bom clima, e a família mudou-se para Barbacena. Fomos visitá-lo uma vez; seu prato, seu copo e seus talheres eram separados dos dos outros, e não se podia chegar perto para não pegar a doença. Ele ficava o dia todo na varanda, triste, numa cadeira de vime, com as pernas cobertas por uma manta, tomando leite, coitado.
Era especial, meu avô, e com ele não havia essa de economizar nos sentimentos: quando eu nasci, mandou fazer meu nome em metal, bem grande, e botou na fachada da casa onde morava. Ah, meu avô querido.
Depois que ele morreu, a família se dispersou, mas ainda guardo dele a mais linda carta que já recebi, contando um sonho que havia tido comigo, querendo me abraçar e não conseguindo.
O tempo passou, mas ainda sei trechos dessa carta de cor - e continuo gostando muito de comer pimenta.
E, como ele dizia, se não chorar, não vale.


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