São Paulo, quarta-feira, 28 de setembro de 2005

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URBANIDADE

À margem da imagem

GILBERTO DIMENSTEIN
COLUNISTA DA FOLHA

Josué Marques de Oliveira, 40 anos, é uma das piores paisagens humanas da cidade de São Paulo. Quase ninguém consegue ao menos chegar perto dele -exceto Cássio Giorgetti, um jovem formado em ciências sociais pela PUC. "A carne apodrecida produz um cheiro muito forte", conta Cássio.
Habitante das calçadas do Bexiga, Josué recebeu, há quatro meses, o diagnóstico de que deveria amputar um dos pés, atacado por uma necrose. Ele fica estirado na rua, o pé já quase descolado do corpo, reclamando das dores. "Não tenho paciência de ficar esperando tanto na fila", justifica Josué. Cássio levou-o à tarde ao hospital para tentar evitar que a necrose avançasse pelo corpo.
Cássio aprendeu a sensibilizar-se diante da marginalidade paulistana influenciado pela família e pelo cinema. No caso dele, família e cinema não se diferenciam. Seu pai, Ugo Giorgetti, é um dos cineastas que melhor retratam a degradação da cidade. Na sua obra "Sábado", em que um prédio decadente serve de cenário para a produção de um comercial, moradores de rua atacam desesperadamente o lanche da equipe de produção. Em outro dos seus filmes, "À margem da imagem", a população de rua é o tema central.
O filho, porém, procurou a realização profissional não nas telas, mas nas ruas, onde os personagens dos filmes do pai não são fictícios. Tornou-se assistente social da prefeitura e quase todas as noites circula conversando com mendigos que dormem ou vivem na rua -um grupo de 11 mil pessoas que se espalham pelas praças e viadutos. Cássio aprendeu como é difícil tirá-los das ruas, mesmo oferecendo-lhes abrigo e até mesmo emprego. "É muito mais difícil do que se imagina."
Percebeu que a imensa maioria dos mendigos sofre de distúrbios mentais associados ao álcool ou a outras drogas, destruída pela depressão ou por diferentes psicoses. "No abrigo, não podem beber; preferem ficar na rua." Mas são muito mais inofensivos do que se imagina, segundo ele. "São pessoas que já chegaram ao fim da linha, entregaram os pontos, e a sociedade não sabe ou não quer recuperá-las."
Cássio também aprendeu que, se colocassem na tela certas imagens que ele testemunha, provavelmente diriam que é exagero. "Não pareceria real." Um exemplo é a imagem de um ser humano tantos meses, na frente de todos, com o pé podre, descolando-se do corpo por falta de atendimento médico.


E-mail - gdimen@uol.com.br

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