São Paulo, terça-feira, 28 de setembro de 2010

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JAIRO MARQUES

Por uma questão de custo


Sou do tempo em que o valor de receber a todos os clientes bem e deixá-los satisfeitos não tinha preço

LOGO NA entrada do boteco, já havia um daqueles degraus imensos, típicos de casas rústicas cheias de percevejo, teia de aranha, alma penada. Até aí, tudo bem. Nada que dois brações sarados -no caso os do segurança do local- não resolvessem para me ajudar a entrar.
A mesa também não acomodava minhas quatro rodas, pois era muito baixa e estreita, mas também tudo bem. Estou acostumado a comer que nem passarinho pegando as migalhas que caem no meu colo por não conseguir me aproximar do prato. Tudo "sussa".
Ainda bem que não convidei uma amiga cega, puxadora de cão-guia, para ir também ao pé-sujo tomar rabo de galo comigo. Ali não havia cardápio em braile e a moça ia me achar deselegante. Onde já se viu levar alguém a um lugar onde não é possível entender o que se vai comer, beber e "sobremesar"?
Depois de tomar umas cinco garrafinhas de tubaína -sempre bebo com moderação por causa da dieta-, a natureza começou a me perturbar exigindo o deságue imediato do líquido. Olho por todos os cantos do boteco, que não era daqueles em que o pessoal fica jogando carteado, não, era chique, numa região valorizada aqui de São Paulo, e cadê o banheiro?
"Seu garçom, o banheiro é onde?", perguntei eu, já prevendo a resposta. "Fica ali em cima, é só subir as escadas", respondeu, apontando para um canto, o comandante, capitão, tio, brother, camarada, como diria o Samuel Rosa, do Skank.
A solução, então, foi a habitual de quando vou para a balada: imaginar que tenho uma caixa-d'água no lugar da bexiga e sublimar a vontade de usar a casinha. Tenho coração muito fraco para resistir aos encantos de dois homens fortes me carregando degraus acima para chegar até o mictório. Além disso, minha noiva pretende se casar em breve.
E tem mais: imagine você, depois de todo o trabalho e os riscos de me subirem, a cadeira não passar na porta do banheiro? Aí seria impossível segurar o aguaceiro nas calças.
Mas o "fatality", o golpe final, ainda estava por vir. A dona do bar, uma morena bonita com sotaque estrangeiro de professora de salsa, veio até mim fazer aquelas perguntinhas básicas: "Gostou do lugar? Está tudo bem?". No que provoquei: "Muito bonzinho, não fala mal de ninguém. Mas a acessibilidade é zero, não é?".
E a moça, que, ora me parecia peruana, ora me parecia chilena, não me pergunte a razão, é puro palpite, deu a explicação de forma lacônica: "A gente tinha programado no projeto fazer tudo certinho para vocês [no caso, as pessoas com deficiência], mas cortamos por uma questão de custo".
Cá comigo, pensei que o último pensamento de alguém que compra um tapete persa e coloca no teto de um boteco, como havia ali, era o do custo. E o sofazão charmoso disposto num ambiente à meia-luz? Com um daqueles em casa, mataria trabalho direto só para ficar deitado vendo Bob Esponja.
Sou do tempo em que o valor de receber a todos os clientes bem, de forma confortável, e deixá-los satisfeitos não tinha preço. Tornar um ambiente acessível não deveria jamais ser visto como "custo" para locais frequentados pelo público. A meu ver, tinha de ser contabilizado como ganho de dignidade, de respeito ao próximo, de clientes e de construção de um mundo melhor.

jairo.marques@grupofolha.com.br

@assimcomovc


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