São Paulo, domingo, 28 de outubro de 2001

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MEDICINA PALIATIVA

Em Jaú, instituição pioneira tem como prioridade melhorar a qualidade de vida de doentes terminais

Centro alivia dor de pacientes incuráveis

RICARDO KOTSCHO
ENVIADO ESPECIAL A JAÚ

No final do corredor, ao lado da capela, uma placa pregada na parede indica a última esperança de alívio para os pacientes: Pavilhão Anna Cândida de Carvalho - Centro de Terapia da Dor e Medicina Paliativa.
"Muitos têm preconceito, vêm para cá com medo", reconhece Antonio Carlos de Camargo Andrade Filho, 49, chefe do primeiro hospice (local de tratamento de pacientes terminais) criado no Brasil, que funciona desde 1993 no Hospital Amaral Carvalho (HAC), em Jaú, a 310 quilômetros de São Paulo.
Não é para menos. Em geral, são encaminhados para esse setor do hospital doentes em estado terminal, que já não reagem aos tratamentos convencionais e sentem dores insuportáveis. Por isso, Camargo já se habituou a ouvir um apelo dramático quando o paciente chega: "Por gentileza, doutor, se não conseguir tirar esta dor, pode me matar".
Os parentes pedem para o doente "não falar uma coisa dessas". Uma vez que o doente é tratado com medicamentos, que o próprio médico ajudou a desenvolver, no dia seguinte é comum ouvir outro pedido: "Doutor, por gentileza, esqueça aquele pedido que fiz ontem".
Especializado em medicina de reabilitação, o então jovem médico e professor da Santa Casa de São Paulo começou a se interessar pela terapia da dor no início dos anos 80.
"Começou com meu sofrimento ao observar pacientes politraumatizados com dores intensas e sem poder fazer nada. Eram pacientes que tinham escapado da morte, mas não conseguiam a reabilitação por causa das dores constantes."
Camargo lembra que, na época, vivia-se o apogeu das UTIs (unidades de terapia intensiva). "Pegavam o indivíduo que chegava num saco plástico e o mantinham vivo de qualquer jeito. Depois, a reabilitação era um calvário de sofrimento porque o paciente não conseguia retomar a vida útil, socialmente aproveitável."
Como não havia nenhum centro especializado no Brasil, ele foi estudar no Centro de Alívio da Dor do Walton Hospital, em Liverpool, na Inglaterra, país pioneiro na instalação de hospices.
Na volta, criou na Santa Casa o primeiro ambulatório de medicina paliativa do país, na contramão da medicina do pós-guerra, que privilegiava a tecnologia para retardar a morte, deixando de se preocupar com a dor.

Medicina antiga
Era uma situação oposta à vivida nos primórdios da medicina, quando a falta de recursos muitas vezes limitava a ação dos médicos ao apoio psicológico e espiritual aos pacientes e seus parentes, buscando diminuir o sofrimento da família.
Para minorar as dores dos doentes, usava-se o ópio como analgésico potente, sem o preconceito que hoje persiste na classe médica brasileira.
O resgate das antigas práticas pela medicina paliativa foi defendido por dois mestres de Camargo: Sampson Lipton, em Liverpool (Inglaterra), e John Bonica, da Universidade de Washington (EUA).
"Os dois são os grandes responsáveis pela mudança de curso da medicina. Os médicos estão voltando a se preocupar com o sofrimento dos pacientes e não só com as modernas técnicas cirúrgicas e terapêuticas."
Ainda na Santa Casa, o pioneiro da medicina paliativa no Brasil contou com o trabalho da farmacêutica Nadja de Oliveira no desenvolvimento de drogas especiais, já que não existiam morfínicos e opiácios para uso oral no mercado.
Antes, de cada dez pacientes, sete necessitavam de intervenções cirúrgicas para combater a dor provocada pelo câncer. Com os medicamentos, esse índice caiu para um por dez. De tanto defender a qualidade -e não a quantidade- de vida dos seus pacientes, ele vivia um paradoxo. Como conciliar a teoria com a prática, vivendo numa cidade como São Paulo?

Destino: Jaú
Quando surgiu o convite para montar um hospice no Hospital Amaral Carvalho, em Jaú, que já conhecia como um centro de referência em oncologia, Camargo não precisou pensar muito.
Foi morar numa confortável casa com jardim e piscina, a poucas quadras do hospital, sem enfrentar trânsito, o que lhe permite almoçar e jantar com a família.
Fundador e ex-presidente da Sociedade Brasileira para o Estudo da Dor, Camargo dedica-se agora a trabalhar na criação de um Programa Nacional de Educação em Dor e Cuidados Paliativos.
Na Inglaterra, o país mais desenvolvido na área, há 472 hospices com média de 15 leitos cada a um custo de US$ 200 por paciente/dia (o tratamento oncológico convencional custa quatro vezes mais caro).
No Brasil, há apenas cinco enfermarias hospices e 14 centros de medicina paliativa. O custo semanal de um paciente internado no centro do HAC é de R$ 427,67, menos que uma diária de UTI em hospital do mesmo porte.

Vagas
O SUS (Sistema Único de Saúde) ainda não remunera esse atendimento, embora o Ministério da Saúde recomende a instalação de enfermarias hospice para pacientes terminais.
Além do custo menor, o remanejamento de doentes incuráveis -cerca de 60% dos internados com câncer- para centros de medicina paliativa liberaria instalações e equipamentos para pacientes hoje sem possibilidades de atendimento.
Na sua ronda pelos quartos, dr. Camargo não se cansa de fazer perguntas. Alegra-se a cada sinal de melhora dos pacientes, como se cada um fosse parente seu. "Melhorou, melhorou mesmo? Então vai ter que andar. De vagabundo aqui, chega eu", brinca, para animar a paciente Ana Maria do Prado, 55, que vem de uma delicada cirurgia no intestino.




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