São Paulo, quinta-feira, 28 de outubro de 2004

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ACIDENTE

Motoboy atingido por árvore na avenida Sumaré, morto aos 39 anos, voltou às ruas depois de fechar microempresa

Vítima ganhou aliança da mulher na véspera

DA REPORTAGEM LOCAL

Na última noite de sua vida, o motoboy Marcos Vinicius Cruz da Silva, 39, ganhou da mulher uma fina aliança folheada a ouro. Era a segunda que Ana Paula Gomes, 24, lhe dava em seis anos de casamento. A primeira, nenhum deles usava. Ele, porque apertava o dedo ao vestir a luva de motoqueiro. Ela, porque o metal se desgastou com os produtos químicos do salão de beleza onde trabalha. "Mas essa eu não vou tirar nunca", disse o marido a Ana Paula.
Juras de amor refeitas, ela brincou: "Vamos nos casar de novo?". Com um meneio de cabeça, ele concordou. E foram para a TV esperar o sono chegar. Horas depois Silva estava estendido no asfalto da avenida Sumaré, vítima de um tronco de árvore que rachou e caiu sobre a pista.
Na noite de ontem, enquanto esperava para fazer o boletim de ocorrência, no saguão do 23º DP, em Perdizes, Ana Paula trocava a aliança de dedos incessantemente. Tremia. Dizia não saber se vai processar a prefeitura. Chorava. E falava, utilizando um pretérito ainda incrédulo, sobre os planos de vida do marido.
"Ele reclamava de cansaço no trabalho. Estava pensando em trocar de profissão. Mas temos dois filhos e ele sempre foi um cara responsável", conta.
Motoboy havia 18 anos, era o número 54 da empresa Free Way Express. Já havia tentado a sorte como microempresário, abrindo sua própria empresa de entregas rápidas. Traído pelo sócio, que desfalcava o caixa, fechou a firma um ano depois. E voltou às ruas com sua Honda Strada roxa, 200 cilindradas, disputando os faróis com outros 200 mil motoboys que circulam diariamente pela cidade.
Ontem, caída no gramado do canteiro central da avenida Sumaré com a lataria levemente amassada e o espelhinho arrancado, a moto de Silva marcava os 79.104 quilômetros que eles percorreram juntos em quatro anos. Era sua companheira de até 14 horas de luta diária. Rendia cerca de R$ 1.500 por mês, mas lhe roubava a dedicação familiar.
"Ele só tinha os domingos com a família. E, ainda assim, muitas vezes passava o dia de folga limpando e cuidando da moto. Só ele tocava na máquina. Era a sua grande paixão", diz Ana Paula.
Considerado um motociclista cuidadoso por colegas, tinha outra imagem entre alguns vizinhos e parentes, que o apelidaram de "Louquinho". Adorava empinar a moto e, ainda solteiro, envolveu-se em alguns acidentes que não causaram ferimentos graves.
Na mochila, levava sempre a foto dos filhos Felipe, 5, e Giovana, 4. Já tinha programado uma viagem para o próximo domingo com toda a família. "Iríamos para a Praia Grande passar o dia no mar", conta Ana Paula.
Fã do rap dos Racionais, que ele cantarolava o dia inteiro, Silva chegava de noite tão cansado à sua casa no bairro de Vila Penteado, na zona norte da cidade, que geralmente pedia para ver um filme de vídeo e dormia no meio. Na terça-feira, alugou Drácula. Dormiu com a aliança no dedo.
Ontem, Cruz acordou cedo, por volta das 6h. Era seu 14.431º dia de vida. Como de costume, preparou a mesa para a família. Tomou o seu último café, calado. Deu um beijo no rosto da mulher, disse "tchau, até de noite" e foi trabalhar. Mas havia uma árvore em seu caminho. (FABIO SCHIVARTCHE)


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