São Paulo, quinta-feira, 28 de novembro de 2002

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PASQUALE CIPRO NETO

"Luta fratricida"

Na última terça, falando a líderes sindicais, o presidente eleito, Luiz Inácio Lula da Silva, empregou a expressão "luta fratricida". Nas últimas semanas, ao analisarem o horrendo crime que vitimou o casal Von Richthofen, especialistas têm usado as palavras "parricídio" e "parricida".
Pois bem, tanto em "fratricida" quanto em "parricida" encontramos o elemento latino "-cida", que significa "o que mata", "o que corta". Se você pensou em esticar a lista com "inseticida", "vermicida" ou "formicida", pensou bem. O "-cida" dessas palavras é o mesmo. O "inseticida" mata insetos, o "vermicida" extermina vermes, e o "formicida" aniquila formigas.
O caso de "formicida", por sinal, é digno de nota. O que temos aí é o resultado da soma da raiz latina "formic(i)-" com o elemento "-cida", com haplologia. Que é isso? É simples: se somássemos os dois elementos, teríamos "formicicida" (sim, "formicicida", com "cici"). A haplologia consiste justamente na "contração ou redução dos elementos similares de um vocábulo", como a define o "Aurélio". Moral da história: um "ci" é fulminado, e, em vez de "formicicida", temos "formicida".
Casos de haplologia são mais numerosos do que talvez se suponha. Pertencem à lista palavras de uso comum, como "idolatria" ("ídolo" + "-latria"), "bondoso" ("bondade" + "-oso"), "herói-cômico" ("heróico" + "cômico") etc.
Bem, voltemos à "luta fratricida" e ao "parricídio". Em "fratricida", temos o mesmo elemento latino que dá origem a "frade": "fratre" ("irmão"). O "fratricídio" nada mais é que o assassínio do próprio irmão e, por extensão de sentido, a guerra civil. O "parricídio" é o assassínio do pai, da mãe ou de qualquer dos ascendentes. "Parricídio" e "parricida" são formadas com a raiz latina de "pai" ("pater", que no próprio latim evoluiu para "parri"). Para o assassínio da mãe, pode-se usar um termo específico: "matricídio".
A esta altura, o leitor talvez tenha pensado na velha discussão sobre o verbo "suicidar". Afinal, esse verbo é pronominal? "Fulano suicidou" ou "Fulano suicidou-se"? O verbo é pronominal, apesar de o significado literal de "suicidar" ser "matar a si mesmo".
A língua não vive só de lógica, caro leitor; vive também de deformações, de pleonasmos consagrados etc. A perda da noção do sentido literal de "suicidar" ou a aproximação semântica desse verbo com "matar" acabam justificando o emprego do "se", consagrado pelo uso -oral e escrito.
Em tempos funestos como os nossos, vejo-me obrigado a traduzir termos que têm origem na miséria humana. Chego a achar que Machado de Assis tinha razão ("Não transmiti a nenhuma criatura o legado da nossa miséria").
Certamente seria melhor tratar de exemplos mais nobres, como os destes versos da antológica canção "Língua", de mestre Caetano Veloso: "A língua é minha pátria / E eu não tenho pátria: tenho mátria / E quero frátria".
"A língua é minha pátria" é referência explícita a Fernando Pessoa ("Minha pátria é a língua portuguesa"). Se a pátria é mãe, o que temos é mátria, diz o poeta, para o qual a melhor solução é a "frátria". Essa (bela) mensagem parece clara o bastante. É isso.


Pasquale Cipro Neto escreve nesta coluna às quintas-feiras.

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