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MOACYR SCLIAR
Limpeza étnica
A final, depois de muito
tempo, aconteceu: eles chegaram ao governo. E, de imediato, resolveram implementar o que
consideravam sua sagrada missão: limpar o país do elemento estrangeiro, um elemento estranho,
suspeito, que trazia violência e só
dava despesa.
Primeiro, foram mandados embora os africanos. Coisa relativamente fácil: era só identificá-los
pela cor. Além disso, como eram
recém-chegados, não tinham como protestar. De modo que foram
embarcados, aos milhares, em
navios, e despachados para seus
lugares de origem.
Depois foram os muçulmanos.
Também eram muitos e também
eram relativamente fáceis de
identificar. Mesma providência:
grandes navios foram fretados, a
bordo dos quais os chamados indesejáveis iniciaram a viagem de
volta.
Depois dos muçulmanos, os judeus. Alvo óbvio, até para que
não se dissesse que o governo
mostrava-se parcial no conflito
do Oriente Médio. Aí surgiram alguns problemas: muitos judeus
eram recém-chegados -estavam
no país há meio século, se
tanto-, mas outros podiam mostrar árvores genealógicas remontando até a Idade Média. De nada lhes adiantou, contudo, tal argumentação. A comissão que investigava sumariamente os antecedentes étnicos dos cidadãos declarou que aquilo não conferia à
nacionalidade um grau suficiente
de pureza. De modo que esses judeus arcaicos -um termo usado
pela comissão- foram também
colocados em navios (ou em trens:
uma exceção aberta especialmente para eles) e mandados embora.
Consultando os manuais de história, a comissão constatou, em
tempos idos, a presença de outros
intrusos: os romanos. Isso, naturalmente, era um problema. Mas
foi estabelecido um chamado perfil latino, com parâmetros tais como altura, cor dos olhos e dos cabelos e sobrenome, que permitiam descobrir, com razoável
grau de segurança, os descendentes dos antigos invasores. Que foram, como os outros (se bem que
com um pouco mais de respeito),
expulsos.
Mas, antes dos romanos, já existiam os gauleses. Como os outros
grupos, haviam vindo de fora;
também eles poderiam ser considerados forasteiros. Claro que a
tradição gaulesa era muito sólida, expressa em simpáticas figuras como a de Asterix, mas a comissão decidiu que princípio era
princípio -e assim todos aqueles
que pudessem ter qualquer resíduo de sangue gaulês nas veias foram expulsos.
Àquela altura, não sobrava
mais ninguém no país. Nem mesmo a comissão, cujos membros se
tinham confessado alienígenas e
tinham ido embora. E a questão
era: quem, afinal, poderia intitular-se autêntico habitante do
país?
É um problema. Sabe-se que,
numa caverna de geladas montanhas, existe o bem preservado cadáver de um homem que ali já estava há milhões de anos. Com células desse nativo, poderiam ser
fabricados clones, que, estes sim,
constituiriam o embrião de uma
nacionalidade autêntica. Uma
providência relativamente simples. Mas não resta ninguém para
fazê-lo.
O escritor Moacyr Scliar escreve às segundas-feiras, nesta coluna, um texto de
ficção baseado em matérias publicadas
no jornal.
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