São Paulo, segunda-feira, 29 de maio de 2006

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GUERRA URBANA

Polícia matou 22 civis com tiros de cima

Rascunhos de laudos necroscópicos apontam que, de 28 mortos em confrontos com policiais, 22 foram atingidos dessa maneira

Trajetória do disparo pode indicar abuso; pesquisa abrange casos de resistência entre as 132 mortes listadas pelo IML Central de São Paulo

GILMAR PENTEADO
FABIANE LEITE

DA REPORTAGEM LOCAL

A grande maioria das pessoas mortas pela polícia na cidade de São Paulo entre os dias 12 e 20 deste mês, durante o auge da crise causada pelos ataques da facção criminosa PCC (Primeiro Comando da Capital), foi atingida por tiros feitos de cima para baixo, segundo rascunhos de laudos feitos pelo IML (Instituto Médico Legal) Central.
A trajetória do disparo é um dos fatores usados para avaliar se houve abuso policial na ação. Um tiro de cima para baixo pode significar que a pessoa foi atingida quando estava rendida, de joelhos ou no chão. Mas a conclusão sobre o abuso ainda depende de outras investigações e documentos.
O IML Central selecionou indiscriminadamente necropsias de 132 pessoas mortas por arma de fogo no período e entregou na semana passada os rascunhos -os laudos oficiais ainda vão ser digitados- para o Cremesp (Conselho Regional de Medicina de São Paulo).
O Cremesp repassou os documentos para a análise de órgãos como o Ministério Público e a Defensoria Pública. A Secretaria da Segurança Pública, por sua vez, não fala sobre as informações dos laudos.
Desses rascunhos, no entanto, apenas 28 referem-se a civis mortos em supostos confrontos com a polícia, segundo análise preliminar feita pelo grupo especial de trabalho da Defensoria. O rascunho traz algumas informações do boletim de ocorrência.
Os outros casos incluídos na listagem de 132 nomes são de policiais mortos e de pessoas assassinadas por desconhecidos. Até a necropsia de uma mulher estrangulada foi incluída nessa documentação pelo IML Central.

Trajetória
Dos 28 civis mortos pela polícia, 22 (78%) foram atingidos por tiros com a trajetória de cima para baixo, segundo os documentos redigidos por médicos legistas do IML Central.
No total, os 28 mortos -16 ainda não tinham sido identificados pelo IML- em supostos confrontos receberam 87 disparos. Desses, 44 tiros foram feitos de cima para baixo.
Em um dos casos, Daniel Donchio Scorza, morto em suposto confronto com a polícia, na área do 49º DP (São Mateus), na zona leste da capital, no dia 16, levou cinco tiros. Quatro disparos foram feitos de cima para baixo.
"Os rascunhos analisados mostram uma prevalência de lesões decorrentes de disparos de arma de fogo na região da cabeça e do tórax, alguns de trás para frente e outros de cima para baixo. Porém, ainda não é possível concluir se houve abuso policial", afirma o subdefensor público do Estado de São Paulo, Pedro Giberti.
Professor de Medicina Legal na Universidade Federal do Rio de Janeiro, Nelson Massini afirma que tiros de cima para baixo podem indicar que as vítimas estavam "deitadas, ajoelhadas ou em outra posição que não a de confronto".
"Tecnicamente, são tiros inviáveis para um tiroteio, um confronto, onde se espera angulação perpendicular ao solo", afirmou Massini.

Pelas costas
Os rascunhos do IML também apontam que, das pessoas mortas pela policia, duas foram atingidas com tiros pelas costas e mais três tiveram ferimento à bala nos braços, o que pode indicar um gesto de defesa da vítima, supostamente dominada.
O adolescente Wesley Rodriguero Cabral Rosa, 16, foi acusado pela polícia de resistir após uma tentativa de roubo, em Artur Alvim (zona leste de SP), no dia 16. Ele levou um tiro na costas e outro na perna esquerda, também disparado por trás. Foi socorrido pelos próprios PMs. Morreu, no entanto, ao dar entrada no hospital.
Em outro suposto confronto com a polícia, agora na área do 17º DP (Ipiranga), zona sul de SP, no último dia 17, Felipe Malke morreu com um tiro pelas costas, segundo documento do IML. O projétil atingiu a parte superior das costas, próxima ao pescoço, atravessou a coluna e a cabeça e foi se alojar na parte superior do nariz. Uma das hipóteses que justificaria essa trajetória é que a pessoa foi atingida quando estava de joelhos, de cabeça abaixada.
Em mais um caso, o IML revela que um homem apontado como desconhecido foi morto, na área do 50 DP (Itaim Paulista), na zona leste de São Paulo, com um tiro na face.
O tiro não foi à queima-roupa, mas o exame feito pelo IML apontou uma "zona de tatuagem". É uma marca de pólvora, mostrando que o tiro foi disparado de uma distância curta da cabeça da vítima.

Parte
Os 28 rascunhos de mortes na capital paulista representam apenas uma parte dos casos de resistência seguida de morte registrados entre os dias 12 e 20. Segundo os últimos números da Secretaria da Segurança Pública, 123 pessoas morreram em todo Estado nesses confrontos no período. A secretaria, no entanto, não disponibilizou às autoridades os laudos de todos esses casos.


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