São Paulo, segunda-feira, 29 de agosto de 2011

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BICHOS

SÍLVIA CORRÊA - correa-silvia@uol.com.br

Cicatrizes do tempo


O trabalho de idosos com cães deve começar enquanto ainda é possível retardar as alterações da velhice

COLECIONAR ARTIGOS científicos sobre animais é um hábito que me acompanha. Dia desses, revirando esses arquivos, achei uma coleção de textos sobre terapia e atividades assistidas por animais.
Os recortes datam de uma época em que eu estava interessada em inscrever minha golden retriever Bebê em um dos projetos que levam animais para visitar casas de repouso. Eles descrevem em detalhes os benefícios cardiovasculares e a redução do número de visitas ao médico entre idosos que convivem com bichos.
Cheguei a participar das reuniões de seleção de voluntários, mas confesso que desisti. As visitas têm data e hora marcadas e são esperadas com ansiedade. Avaliei que elas ainda não cabiam na minha rotina de trabalho-casa-faculdade-família e achei melhor adiar a ideia.
Foi logo depois disso que minha avó materna, aos 82 anos, veio morar em São Paulo. E assim, meio sem querer, tive a chance de imaginar os benefícios que os animais podem proporcionar ao desgastado corpo humano.
Minha avó nunca foi uma apaixonada por cães. Acho até que, no começo, era o carinho que ela tinha por mim que a fazia tolerar, sem queixas, latidos, lambidas e nuvens de pelo.
Aos poucos, porém, a história foi mudando. Nos almoços de domingo, vó Verônica tinha duas grandes distrações: passar os pés ao longo do pelo macio da golden Bebê e ver Santa Maria (a quem ela apelidou de Louquinha) se atirar na piscina.
A interação com Bebê claramente estimulava os sentidos de Verônica. Lembro-me de sua face intrigada numa tarde em que coloquei pedrinhas sobre o corpo da cachorra. Com a visão já muito prejudicada, ela ficou tateando com os pés e abriu um largo sorriso ao perceber a armadilha.
Mas a doença avançava rapidamente e a debilitava a cada dia. Tentei algumas vezes ajudá-la a lançar ossinhos para os cachorros. Mas, após um ou dois movimentos, ela ficava exausta. Já era tarde demais.
O trabalho de idosos com cães deve ser iniciado numa época em que ainda é possível retardar as alterações musculares, articulares e ósseas provocadas pelo envelhecimento -processo que, no caso de minha avó, havia começado muitos anos antes. Se o tempo já deixou cicatrizes, os benefícios são mais emocionais do que exatamente físicos.
Quando a doença passou a impedi-la de ir à minha casa, ela com frequência dizia ter saudades de Bebê e de Louquinha. Era, de fato, uma interação e tanto. Minha avó estimulava -"Vai, Louquinha, vai"- e a pequena teckel corria, pulava na água, nadava até a escada adaptada e saía sozinha da piscina, sob os aplausos da família.
Se tivéssemos tido mais tempo, poderíamos ter brincado mais, jogado mais ossinhos, feito mais túneis com as pernas. São atividades simples, mas que tornam o exercício mais prazeroso para a maioria dos idosos.
Não deu. Hoje faz um ano e meio que a doença nos levou Verônica. Em muitos sentidos nos reencontramos tarde demais. Mas talvez aí, na sua casa, a história ainda possa ser bem diferente.


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