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São Paulo, segunda-feira, 29 de setembro de 2003

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MOACYR SCLIAR

O destino bate à porta

 Canguru fêmea salva a vida de fazendeiro na Austrália. Canguru fêmea salvou a vida de um fazendeiro australiano ao alertar sua família de que ele estava caído no campo, inconsciente. O animal bateu repetidamente na porta da casa da família, até que a mulher do fazendeiro viesse abrir, e levou-a até o marido. Ele havia sido atingido por um galho caído de uma árvore. Folha Online, 22.set.2003

A primeira reação do fazendeiro, quando se recuperou da lesão (e do susto), foi de enorme gratidão. De imediato foi atrás da fêmea de canguru que lhe salvara a vida. Depois de muito procurar, encontrou-a, conseguiu atraí-la para uma espécie de cabana que tinha construído perto de sua própria casa e instalou-a ali. Dolly, este foi o nome que lhe deu, revelou-se uma criatura dócil, meiga, afetiva. Aos pulos, como os cangurus costumam fazer, seguia o fazendeiro por toda a parte. E quando ele estava almoçando ou jantando, ficava espiando pela janela, com ar ansioso; parecia querer certificar-se de que o homem estava bem. O fazendeiro, por sua vez, passava longas horas na cabana, alimentando Dolly ou simplesmente olhando-a, embevecido.
Tanta afeição acabou por perturbar a esposa. Depois de muito hesitar, resolveu falar com o marido a respeito. Sim, compreendia a gratidão dele, mas não seria aquilo um exagero? Os amigos, inclusive, já estavam estranhando.
O fazendeiro nada dizia. Olhava-a, simplesmente; um olhar em que se misturavam raiva e desprezo. Por fim falou. E ao fazê-lo estava, claramente, desabafando emoções de há muito contidas.
Começou por admitir que sua relação com Dolly era especial e que ultrapassava o carinho que muitos sentem por animais. Mas isso tinha explicação: o que ele encontrava na fêmea de canguru nunca encontrara em nenhum ser humano, nem mesmo na mulher. Contra quem tinha, aliás, acusações:
Como você mesmo contou, Dolly teve de bater repetidamente na porta para que você abrisse. E, apesar dos esforços dela para demonstrar que se tratava de uma urgência, você hesitou em segui-la.
Boquiaberta, a mulher ouvia, sem saber o que responder. Tentou ponderar que, afinal, tratava-se de um animal, e que, em princípio, ela não tinha por que segui-lo. Como adivinhar que o marido estava na floresta, inconsciente? Falou, falou, mas, pela expressão dele, sabia que era inútil. Tinha perdido o marido. Para uma fêmea de canguru.
Ainda moram juntos, mas ela sabe que é só para manter as aparências. O marido só tem olhos para Dolly. Esposa desprezada, ela fica longas horas mirando a cabana, perguntando-se o que acontece lá dentro e lembrando o dia em que, por assim dizer, o destino bateu à sua porta.


Moacyr Scliar escreve às segundas-feiras, nesta coluna, um texto de ficção baseado em matérias publicadas no jornal.

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