|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
MOACYR SCLIAR
O destino bate à porta
Canguru fêmea salva a vida de fazendeiro na Austrália. Canguru fêmea salvou a vida de um fazendeiro
australiano ao alertar sua família de
que ele estava caído no campo, inconsciente. O animal bateu repetidamente na porta da casa da família,
até que a mulher do fazendeiro viesse abrir, e levou-a até o marido. Ele
havia sido atingido por um galho
caído de uma árvore. Folha Online,
22.set.2003
A primeira reação do fazendeiro, quando se recuperou da lesão (e do susto), foi de
enorme gratidão. De imediato foi
atrás da fêmea de canguru que
lhe salvara a vida. Depois de muito procurar, encontrou-a, conseguiu atraí-la para uma espécie de
cabana que tinha construído perto de sua própria casa e instalou-a ali. Dolly, este foi o nome que
lhe deu, revelou-se uma criatura
dócil, meiga, afetiva. Aos pulos,
como os cangurus costumam fazer, seguia o fazendeiro por toda
a parte. E quando ele estava almoçando ou jantando, ficava espiando pela janela, com ar ansioso; parecia querer certificar-se de
que o homem estava bem. O fazendeiro, por sua vez, passava
longas horas na cabana, alimentando Dolly ou simplesmente
olhando-a, embevecido.
Tanta afeição acabou por perturbar a esposa. Depois de
muito hesitar, resolveu falar com
o marido a respeito. Sim, compreendia a gratidão dele, mas
não seria aquilo um exagero?
Os amigos, inclusive, já estavam
estranhando.
O fazendeiro nada dizia. Olhava-a, simplesmente; um olhar em
que se misturavam raiva e desprezo. Por fim falou. E ao fazê-lo
estava, claramente, desabafando
emoções de há muito contidas.
Começou por admitir que sua
relação com Dolly era especial e
que ultrapassava o carinho que
muitos sentem por animais. Mas
isso tinha explicação: o que ele
encontrava na fêmea de canguru
nunca encontrara em nenhum
ser humano, nem mesmo na mulher. Contra quem tinha, aliás,
acusações:
Como você mesmo contou,
Dolly teve de bater repetidamente
na porta para que você abrisse.
E, apesar dos esforços dela para
demonstrar que se tratava
de uma urgência, você hesitou
em segui-la.
Boquiaberta, a mulher ouvia,
sem saber o que responder. Tentou ponderar que, afinal, tratava-se de um animal, e que, em princípio, ela não tinha por que segui-lo. Como adivinhar que o marido
estava na floresta, inconsciente?
Falou, falou, mas, pela expressão
dele, sabia que era inútil. Tinha
perdido o marido. Para uma fêmea de canguru.
Ainda moram juntos, mas ela
sabe que é só para manter as aparências. O marido só tem olhos
para Dolly. Esposa desprezada,
ela fica longas horas mirando a
cabana, perguntando-se o que
acontece lá dentro e lembrando o
dia em que, por assim dizer, o destino bateu à sua porta.
Moacyr Scliar escreve às segundas-feiras, nesta coluna, um texto de ficção baseado em matérias publicadas no jornal.
Texto Anterior: Administração: Servidores fraudam empréstimo bancário Próximo Texto: Consumidor: Estudante se queixa dos pacotes da Sky Índice
|