São Paulo, quinta-feira, 29 de setembro de 2005

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PASQUALE CIPRO NETO

"Este açúcar (...) com que adoço meu café..."

"Nem aquilo a que me entrego / já me traz contentamento...". O leitor certamente já reconheceu esses versos, que integram o poema "Canteiros", escrito por Cecília Meireles e musicado por Raimundo Fagner.
Há um bom tempo, tratei neste espaço do emprego da combinação "preposição + pronome relativo". O mote foi justamente o "a que" do poema de Cecília, em que o "a", regido pelo verbo "entregar" (entregar-se a algo ou a alguém), antecede o relativo "que".
Os vestibulares estão chegando, por isso me parece oportuno tratar do tema mais uma vez, visto que é comum as bancas examinadoras exigirem dos candidatos o domínio dessa estrutura, típica das variedades cultas da língua.
Sabemos que na língua oral é mais do que comum a supressão da preposição que antecede (ou deveria anteceder) o pronome relativo "que", como se vê em "A rua que eu moro...", "A roupa que você estava ontem...", "Os países que eu estive..." etc. Nas variedades formais da língua, essas formas se alterariam para "A rua em que (eu) moro..." (morar em uma rua), "A roupa com que você estava ontem" (estar com uma roupa) e "Os países em que (eu) estive..." (estar em um país).
Nas variedades formais da língua, a supressão da preposição pode ter efeitos "estranhos". Se Cecília Meireles tivesse escrito "Nem aquilo que me entrego", que alteração haveria? Não é preciso ir muito longe para perceber que "entregar-se algo" é bem diferente de "entregar-se a algo", não? E o que ocorre quando se suprime o "em" de "A revista que eu escrevo"? É simples: de simples integrante da equipe de articulistas da revista, o redator da frase passa a factótum ("aquele que pensa ser ou se revela apto a solucionar tudo", como define o "Houaiss").
Pois bem, em homenagem ao grande poeta maranhense Ferreira Gullar, lembro a estrofe final do pungente poema "O Açúcar", que, embora tenha sido escrito há um bom tempo, continua malditamente atual, neste Brasilzão de Deus (que não avança de jeito nenhum): "Em usinas escuras, / homens de vida amarga / e dura / produziram este açúcar / branco e puro / com que adoço meu café esta manhã em Ipanema".
Escrito em língua culta, o poema de Gullar apresenta a passagem "...com que adoço meu café esta manhã em Ipanema", em que se nota o emprego da preposição "com" antes do pronome relativo "que". Regida pelo verbo "adoçar" (adoçar com açúcar), a preposição "com" introduz idéia de instrumento ou meio (o açúcar é o instrumento ou o meio com que/ com o qual se adoça o café). Na língua oral, é baixa a incidência desse tipo de construção.
É de notar que, no começo do poema, Gullar escreveu estes versos: "O branco açúcar que adoçará meu café / nesta manhã de Ipanema / não foi produzido por mim...". Compare essa estrofe com a que encerra o poema. Percebeu que na primeira "o branco açúcar" é sujeito de "não foi produzido" (na voz passiva)? Percebeu que na última o sujeito de "adoçar" ("com que adoço", na voz ativa) passa a ser "eu", e o açúcar passa a ser o instrumento com que se adoça o café?
Gullar trabalha com mestria a variação sintática justamente para obter ênfase primeiro para "o branco açúcar" e depois para os "homens de vida amarga e dura" e para o eu do poema. É isso.


Pasquale Cipro Neto escreve nesta coluna às quintas-feiras.
E-mail - inculta@uol.com.br


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