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PASQUALE CIPRO NETO
"Este açúcar (...) com que adoço meu café..."
"Nem aquilo a que me
entrego / já me traz contentamento...". O leitor certamente já reconheceu esses versos, que
integram o poema "Canteiros",
escrito por Cecília Meireles e musicado por Raimundo Fagner.
Há um bom tempo, tratei neste
espaço do emprego da combinação "preposição + pronome relativo". O mote foi justamente o "a
que" do poema de Cecília, em que
o "a", regido pelo verbo "entregar" (entregar-se a algo ou a alguém), antecede o relativo "que".
Os vestibulares estão chegando,
por isso me parece oportuno tratar do tema mais uma vez, visto
que é comum as bancas examinadoras exigirem dos candidatos o
domínio dessa estrutura, típica
das variedades cultas da língua.
Sabemos que na língua oral é
mais do que comum a supressão
da preposição que antecede (ou
deveria anteceder) o pronome relativo "que", como se vê em "A
rua que eu moro...", "A roupa que
você estava ontem...", "Os países
que eu estive..." etc. Nas variedades formais da língua, essas formas se alterariam para "A rua
em que (eu) moro..." (morar em
uma rua), "A roupa com que você
estava ontem" (estar com uma
roupa) e "Os países em que (eu)
estive..." (estar em um país).
Nas variedades formais da língua, a supressão da preposição
pode ter efeitos "estranhos". Se
Cecília Meireles tivesse escrito
"Nem aquilo que me entrego",
que alteração haveria? Não é preciso ir muito longe para perceber
que "entregar-se algo" é bem diferente de "entregar-se a algo",
não? E o que ocorre quando se suprime o "em" de "A revista que eu
escrevo"? É simples: de simples integrante da equipe de articulistas
da revista, o redator da frase passa a factótum ("aquele que pensa
ser ou se revela apto a solucionar
tudo", como define o "Houaiss").
Pois bem, em homenagem ao
grande poeta maranhense Ferreira Gullar, lembro a estrofe final
do pungente poema "O Açúcar",
que, embora tenha sido escrito há
um bom tempo, continua malditamente atual, neste Brasilzão de
Deus (que não avança de jeito nenhum): "Em usinas escuras, / homens de vida amarga / e dura /
produziram este açúcar / branco e
puro / com que adoço meu café esta manhã em Ipanema".
Escrito em língua culta, o poema de Gullar apresenta a passagem "...com que adoço meu café
esta manhã em Ipanema", em
que se nota o emprego da preposição "com" antes do pronome relativo "que". Regida pelo verbo
"adoçar" (adoçar com açúcar), a
preposição "com" introduz idéia
de instrumento ou meio (o açúcar
é o instrumento ou o meio com
que/ com o qual se adoça o café).
Na língua oral, é baixa a incidência desse tipo de construção.
É de notar que, no começo do
poema, Gullar escreveu estes versos: "O branco açúcar que adoçará meu café / nesta manhã de Ipanema / não foi produzido por
mim...". Compare essa estrofe
com a que encerra o poema. Percebeu que na primeira "o branco
açúcar" é sujeito de "não foi produzido" (na voz passiva)? Percebeu que na última o sujeito de
"adoçar" ("com que adoço", na
voz ativa) passa a ser "eu", e o
açúcar passa a ser o instrumento
com que se adoça o café?
Gullar trabalha com mestria a
variação sintática justamente para obter ênfase primeiro para "o
branco açúcar" e depois para os
"homens de vida amarga e dura"
e para o eu do poema. É isso.
Pasquale Cipro Neto escreve nesta coluna às quintas-feiras.
E-mail - inculta@uol.com.br
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