São Paulo, segunda-feira, 29 de novembro de 2004

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SAÚDE

Coordenador fala em quebrar patentes para manter acesso universal aos remédios; negociação causou insolvência

Governo vê colapso em programa de Aids

FABIANE LEITE
DA REPORTAGEM LOCAL

O coordenador de DST/Aids do Ministério da Saúde, Pedro Chequer, prevê um colapso na distribuição gratuita de medicamentos contra a doença no ano que vem e diz que o país iniciará a produção nacional de remédios hoje importados. Ou seja, quebrará patentes (licenciamento compulsório) ou iniciará a produção com a colaboração dos laboratórios (licenciamento voluntário).
Na última sexta-feira, Chequer afirmou que a política das gestões anteriores, centrada na negociação de preços, é responsável pela situação de "quase insolvência" do programa.
O país tem o maior programa de distribuição gratuita e universal de remédios contra a Aids do mundo, com um total de 15 drogas disponíveis. Hoje, 151 mil pessoas estão em tratamento a um custo que deve chegar a R$ 600 milhões neste ano. Cerca de 80% do orçamento é gasto com os remédios importados.
Conhecido por ter uma posição mais radical quando o assunto é negociação com laboratórios farmacêuticos, Chequer afirma que os preços praticados pelas empresas são abusivos e que a legislação que dificulta o acesso universal aos remédios está a serviço de "interesses escusos".
No passado, o ministério já falou em quebrar patentes e em ter capacidade para a produção nacional das drogas importadas, mas o discurso foi utilizado apenas para barganhar com as empresas multinacionais. "Estamos avançando numa situação tal que não vamos estar simplesmente tentando informar que temos condições [de produzir] para reduzir preço. Até porque entendemos que essa posição é um suicídio. Nós não estamos trabalhando nessa linha no sentido de barganha ou de ameaça", completa.
A quebra imediata das patentes é o coro das ONGs que defendem os portadores do HIV no dia mundial de combate à doença, comemorado na próxima quarta-feira. "Negociar não serve mais", afirma Michel Lotrowska, representante da campanha de acesso a medicamentos essenciais da Médicos Sem Fronteiras.

Folha - Como está a negociação com os laboratórios?
Pedro Chequer -
O problema é que as multinacionais colocam os preços de modo exorbitante, já com o objetivo de criar a falsa idéia que nós conseguimos economizar. A negociação de preços é importante, até porque temos de pensar no orçamento imediato, mas a médio e longo prazo não representa aquilo que se entende como interesse nacional na auto-suficiência. Por que isso? Se tomarmos 1998 e 1999 como referência, em torno de 50% do orçamento do Brasil para medicamentos contra a Aids era para remédios importados. Hoje, 2004, situação essa que se agrava mais ainda em 2005, estamos gastando 80% do orçamento em compras das multinacionais. Isso significa que, a curto prazo, mantida a atual situação do Brasil de apenas produzir o que não está sob patente, nós vamos comprometer seriamente a capacidade de o país manter a política de acesso universal. Mantida a atual situação, no ano que vem talvez alcancemos 90% ou 85%. Cada vez mais, nós estamos utilizando menos o medicamento produzido no Brasil, até porque, à medida que novas drogas entram, as antigas caem em desuso. E aí significa o quê? Que o Brasil vai ser refém da indústria multinacional, e aí a negociação é outra. Na medida que está refém e não tem capacidade para produzir, o preço define quem vende. Temos de apostar na redução de preços, mas não como única alternativa, até porque apenas essa política quase nos levou a uma situação de insolvência numa perspectiva imediata para o próximo ano. É decisão fortalecer os laboratórios estatais, fazer parcerias com a indústria nacional privada, de repente pode ser algo como a PPP [parceria público privada] da área farmacêutica. Sem isso, não tenha dúvida de que nós vamos entrar em colapso em breve. Em breve.

Folha - O que foi feito até agora?
Chequer -
A partir de agosto estivemos com o Lafepe [laboratório público de Pernambuco], a indústria privada nacional e o BNDES [Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social]. Chegamos à conclusão de que há condições técnicas hoje, a curto prazo, de avançarmos na produção de novos medicamentos.

Folha - Quais medicamentos serão produzidos?
Chequer -
Não seria prudente informar. De três a cinco. Avançaremos nesse sentido, seguindo as normas da OMC [Organização Mundial do Comércio], mas, acima de tudo, considerando o interesse nacional de garantir que o paciente de Aids tenha o acesso. Nenhuma lei internacional pode estar acima ou sobrepor o compromisso ético de assistir nossa população. Se existe essa lei, ela está a serviço de interesses econômicos escusos.

Folha - No ano passado já houve menção de que se poderia produzir, mas nada aconteceu.
Chequer -
Estamos avançando numa situação tal que não vamos simplesmente tentar informar que temos condições [de produzir] para reduzir preço. Até porque entendemos que essa posição seja um suicídio. Não estamos trabalhando nessa linha no sentido de barganha ou de ameaça, e sim no sentido consistente de o país implantar nova politica de anti-retrovirais que seja sustentável e que garanta no futuro que o Brasil mantenha sua política de acesso universal

Folha - Vai haver licenciamento compulsório [quebra de patente sem a concordância da empresa]?
Chequer -
Bem, havendo necessidade, sim. O país caminhará nessa linha, e há um entendimento muito claro em relação a essa questão. Porque de repente podemos ter uma situação em que as empresas façam voluntariamente. Mas que não nos venham com licenciamento que seja apenas barganha de postergar a decisão de ser auto-suficiente.

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