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São Paulo, segunda-feira, 29 de dezembro de 2003

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MOACYR SCLIAR

Ano Novo, vida nova

A dona-de-casa Maria do Socorro Teixeira Moreira não tem certeza da data de nascimento de seu filho mais velho. O menino não tem uma certidão de nascimento; na comunidade em que vivem (Caucaia, região metropolitana de Fortaleza), é comum a demora no registro. Maria não registrou o filho porque o pai deste não quis reconhecer a paternidade.
Cotidiano, 18.dez.2003

Ele nunca soube a data exata de seu nascimento. Interrogou a mãe várias vezes a respeito, mas, por mais que ela se esforçasse, não conseguia lembrar. Tinha memória fraca, em primeiro lugar. E depois, eram muitos filhos, muita coisa em que pensar. Simplesmente não recordava. O que o deixava muito triste: eu sou o único cara no mundo que não tem data de aniversário, pensava.
Um dia, porém, tomou uma decisão, uma decisão que a ele próprio surpreendeu pela audácia: arranjaria para si próprio um dia para o seu aniversário. Já que ninguém sabia quando ele havia nascido, esta data agora seria estabelecida pelo grande interessado, ele mesmo.
E seria uma grande data. Uma data da qual as pessoas não esqueceriam mais, senão por outra razão, então pelo fato de que essa data marcaria também algum evento notável. Primeiro pensou numa celebração religiosa, como a Páscoa. Mas isso gerava dois tipos de problema: a Páscoa é uma festa móvel, e não são todas as pessoas que a celebram, o que, para quem queria unanimidade, era um obstáculo. Depois pensou em algo marcante na história da humanidade: a chegada do homem à Lua. De novo, isso era problemático: se uma nova expedição lunar tivesse êxito, a experiência precursora ficaria relegada para um segundo plano.
E alguma coisa da história do Brasil? O Dia da Independência, por exemplo? Mais uma vez viu nisso um potencial de controvérsia. Algum vizinho metido a besta poderia achar que ele pretendia uma associação com a heróica figura do príncipe Dom Pedro, o que, para um garoto de periferia, seria demasiada pretensão. Melhor evitar comentários ofensivos.
Àquela altura já estava quase desistindo de ter uma data natalícia. Mas, recentemente, algo lhe ocorreu, uma idéia luminosa, abençoada.
Primeiro de janeiro. Esse é agora o dia de seu aniversário. Um dia que o mundo todo celebra. Cada vez que os foguetes espoucarem no ar, estarão saudando o seu nascimento. Cada vez que as pessoas brindarem, estarão brindando também por sua felicidade. Porque o Ano Novo é para todos. Mesmo para aqueles que não sabem em que dia nasceram.


Moacyr Scliar escreve às segundas-feiras, nesta coluna, um texto de ficção baseado em matérias publicadas no jornal.


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