São Paulo, terça-feira, 29 de dezembro de 2009

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

CECILIA GIANETTI

Fim de ano no hospital


A tia se lembrava cada vez menos lá de fora, concentrava-se no seu futuro que via num leito

"AOS 12 ANOS , aprendeu a chorar como a tia. Arte comedida. Sentadas no sofá diante da mãe e de uma desconhecida. A mãe ressonando sem apêndice no estupor da anestesia, larga e nua debaixo do lençol que deve ter sido verde: agora ralo na cor e na textura, protegia a carne dos mosquitos que rondavam a enfermaria. A estranha deitada no outro leito era massa disforme e inerte, pele mais fina que os panos velhos do hospital. O peito não se abalava pela respiração, o oxigênio se impunha, tragado a contragosto. A boca aberta era um buraco escuro contornado por fiapos de lábios sem cor. Não tinha dentes. Dentro da caverna destacava-se a língua solitária, que não viram mexer-se vez nenhuma enquanto estiveram naquele quarto. A parede azul detrás dos ferros da cama movia-se mais que a velha, as sombras de uma mangueira lembravam que lá fora tinha coisa.
Lá fora tinha máquina grande de Coca-Cola na saleta, recepcionista de calça justa falando com alguém pelo computador; de vez em quando ela dava um risinho e táqui-ti-táquiti pra teclar de novo furiosamente com os olhos cravados na tela; a menina viu enquanto aguardavam a internação. Lá fora, tempo feio, dois garotos que tinha visto soltando pipa. A tia se lembrava cada vez menos lá de fora, concentrava-se no seu futuro que via num leito.
A enfermeira veio com um lençol novo e fraldas.
-Fez, é? -A velha, nada.
-Vamos, dona Maria. -Dona Maria não se movia.
A enfermeira não tinha ancas, magreza feia sob uniforme branco. Suspendeu sozinha as pernas da paciente, que não abriu os olhos. A menina via, entre o balé de ossos da enfermeira, as pelancas das pernas suspensas. As sardas nas pernas da velha eram maiores que as sardas na pele da menina. Diogo beijou suas sardas aos 12 anos, dizendo que eram bonitas. A sombra das árvores na parede azul atrás da velha lembravam que lá fora havia colégio e Diogo pra beijar a menina.
Diogo, com pelos nas pernas, já beija de língua, dedilha a menina. Ela sempre alisa o cabelo dele; é preto e crespo e faz cócegas na palma da mão. Não diz nada a ele depois de tocá-lo assim, mãos sobre o cabelo igual ao de cadete. Ele não tem patente, nem ela sabe o que isso quer dizer. Lá fora há dedos e línguas. Assim que a enfermeira desatou os adesivos da fralda, explodiu o cheiro agressivo nos quatro cantos do quarto. A enfermeira arranjou na garganta uma voz infantil pra ralhar de brincadeira com a fralda, como se ralhasse com a velha-criança, já que a paciente mesmo não escutava.
-Dona Maria, dona Maria... Lá do quarto ainda se ouvia. Dona Maria, dona Maria. Que, de fralda limpa, respondia nada. Quanto dona Maria não dava por uma infância que não fosse deitada?
A tia sentada no sofá encarava a desconhecida no leito. Nem olhava pra cunhada. O rosto vermelho da tia, onde o choro não chegava a molhar o queixo, era cortado por gestos rápidos das costas das mãos antes de desenharem afluentes pela pele seca. As sardas na pele da tia já eram quase tão grandes quanto as manchas da desconhecida.
-Hein, tia? Que foi?
-Alergia.

www.twitter.com/giannetti

http://apocalipso.folha.blog.uol.com.br/


Texto Anterior: Outro lado: Consórcio não comenta conclusão do IPT
Próximo Texto: A cidade é sua
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.