São Paulo, domingo, 30 de janeiro de 2005

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COPO CHEIO

Especialista norte-americano afirma que o Brasil desperdiça recursos devido à política em relação à bebida

Governo não é confiável para conter álcool, diz cientista

FABIANE LEITE
DA REPORTAGEM LOCAL

A comunidade científica está desapontada com o governo brasileiro, diz um dos principais especialistas em políticas públicas para o controle do álcool, o cientista político norte-americano Robert Reynolds. Ele esteve no país na última semana para uma série de encontros sobre como desenvolver estratégias contra o lobby da indústria.
Na contramão do que provam os estudos científicos, o país foi um dos que recentemente se posicionou contra uma proposta levada à Organização Mundial da Saúde (OMS) de sobretaxar as bebidas alcoólicas como forma de combater o consumo abusivo. Ajudou a fazer a idéia a cair por terra, uma vez que ela nem foi levada à votação.
Aumentar o preço da bebida é uma maneira comprovada de diminuir o consumo, especialmente entre bebedores pesados e jovens, os grupos mais vulneráveis.
"O governo não tem sido um parceiro confiável", afirma Ronaldo Laranjeira, líder da Aliança Cidadã pelo Controle do Álcool, grupo que ciceroneou Reynolds no Brasil e está revoltado com a posição brasileira.
"Não só no Brasil, a indústria de bebidas tem sido subsidiada pelos governos", afirmou Reynolds, que é diretor do Centro para Análises Políticas e Treinamento, órgão financiado pelo governo norte-americano especializado em traduzir o que a ciência sabe sobre prevenção em políticas públicas. A seguir, trechos da entrevista concedida pelo especialista à Folha na última sexta-feira, acompanhada por Laranjeira.

Folha - O que o senhor achou da posição do governo brasileiro?
Robert Reynolds
- Eu não estou dando palpites na política brasileira, mas posso dizer que o que sabemos é que em todos os países, não só no Brasil, a indústria de bebidas tem sido subsidiada pelos governos. O preço do álcool deveria refletir o seu custo social. O álcool é subtaxado. Sim, a indústria gera impostos, mas cria uma série de problemas. Se você olha somente o quanto a indústria paga em taxas, você está vendo apenas um lado da história. Nos EUA, para cada US$ 1 (R$ 2,65) que entra em impostos pagos pela indústria há outros US$ 9 (R$ 23,90) em custo social -em serviços de saúde, perda de produtividade, desagregação de famílias. Os países têm diferentes decisões sobre quais indústrias subsidiar. Nos EUA nós subsidiamos as companhias aéreas porque elas nos dão aeroportos e meios de transporte. Então a decisão sobre isso no Brasil é uma decisão dos brasileiros. Mas o impacto econômico é bem claro. E vocês têm bebidas incrivelmente baratas, eu nunca estive em um país em que a cerveja é cinco vezes mais cara do que a pinga. E o álcool mais perigoso é o que tem o preço menor. Isso gera um tremendo impacto no desenvolvimento econômico do Brasil. O álcool não está contribuindo para o desenvolvimento econômico, ele custa muito. São os brasileiros que têm de decidir. Mas o voto do Brasil na OMS chamou a atenção da comunidade da saúde pública em todo o mundo. Estamos realmente desapontados.

Folha - O lobby feito pela indústria do setor é muito forte. Eles têm escritórios trabalhando só nisso no Congresso.
Reynolds
- Eu acredito no poder da palavra. Aceito que o interesse econômico tenha um discurso. O problema é que os que defendem os interesses da saúde pública não têm falado o suficiente. Somente um lado da história é dito. É essencial que a saúde pública, comunidades religiosas e todos os cidadão falem mais. Eles não devem deixar que a indústria seja a única voz.

Folha - Como dar início a uma estratégia nacional?
Reynolds
- O governo que tem mais responsabilidade para que isso comece é aquele que está mais próximo das pessoas.

Folha - São Paulo tem uma lei para que bares fechem a 1h, mas não funciona. O que fazer em uma grande cidade?
Reynolds
- Você não pode ter um tipo de política que funcione para todas as áreas da cidade. Se há um bar numa área residencial criando muito barulho e desordem, faz sentido pedir que fechem mais cedo. Mas se você tem uma área de entretenimento, você precisa de uma política diferente, específica para o problema. Não há uma resposta simples, mas a análise não é complicada.

Ronaldo Laranjeira - As poucas leis que existem não são implementadas e São Paulo paga um preço alto. Necessita de uma política clara sobre o beber e dirigir, as vendas para menores e regular o mercado. Os bares que quisessem vender bebidas 24h deveriam pagar uma licença mais cara, teríamos recursos para a prevenção.

Folha - O senhor acha que a polêmica em torno do suposto hábito de beber do presidente Lula contribui para que o álcool seja um assunto tabu no governo?
Reynolds
- Eu não acho que a política de nenhum país é determinada por um indivíduo sozinho. O Brasil tem uma tremenda influência no mundo, e uma política formal do Brasil é muito importante. Penso que mais importante do que os brasileiros pensam. Quando o Brasil vota num encontro, esse voto ecoa. A questão é que isso não é só um problema do Brasil, é uma questão da OMS, é a 3ª principal causa de morte [evitável] no mundo. Nós temos uma tradição, e o Brasil precisa criar novas tradições. Por exemplo, houve um plano central para a estratégia contra a Aids, alguém pagou por esse plano, e não há agora ninguém desenvolvendo um plano estratégico para reduzir os problemas do álcool, apesar das evidências. Eu estou aqui por causa de seu potencial, vocês têm um potencial maior de contribuir para a saúde pública do que grande parte dos países.

Folha - A indústria faz esforços contra o beber e dirigir, investe em informação ao público.
Reynolds
- As coisas que a indústria patrocina são populares, mas ineficazes. Tudo o que fazem foca em decisões individuais, não em desenvolvimento de políticas. Eu posso educar você para sempre [sobre não dirigir após beber], mas depois de duas caipirinhas você não pode fazer uma boa decisão porque você dorme, a parte do seu cérebro que foi "educada" dorme. Querem parecer interessados em prevenção e ter certeza de que não perderão seus lucros. Como posso chegar em casa? Se eu bebo dois drinques, eu não lembro que não posso dirigir! É simplesmente estúpido! Se eles estão comprometidos com a prevenção, que dêem o dinheiro para o governo, que decidirá como gastá-lo. Não é que sejam pessoas más. É a natureza de seu produto. Se você tem cem pessoas que começam a beber, 15 serão alcoólatras. Isso garante uma renda para o resto da vida à indústria. Eles não lucram com o beber socialmente, mas com o vício.

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