São Paulo, domingo, 30 de janeiro de 2005

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GILBERTO DIMENSTEIN

Quando a volta às aulas é um alívio

Para um punhado de adolescentes, a volta às aulas, neste ano, significa não o sofrimento pelo fim das férias, mas um momento especial em suas vidas. Eles estão não apenas aliviados mas, sobretudo, orgulhosos de pisar de novo na escola.
Essa é a história de um grupo de jovens que aprendeu, na marra, a fazer história. É dos bons exemplos que conheço do valor do conhecimento e merece um estudo de caso das pessoas preocupadas em melhorar a educação no Brasil.
No final do ano passado, eles foram informados de que a escola pública em que estudavam, no bairro da Vila Nova Conceição, em São Paulo, chamada Martim Francisco, seria demolida. No seu lugar, surgiria um empreendimento imobiliário. Seriam transferidos para um prédio situado nas redondezas. A escola funcionava ali havia 66 anos.
Pais, alunos e professores tinham poucas semanas para reagir. O negócio andava tão rapidamente que a prefeitura chegou a desconsiderar um parecer de sua assessoria jurídica que recomendava que a transação não fosse realizada.
Os estudantes começaram a fazer manifestações quando a cidade já estava envolvida nas festas de fim de ano. Já de férias, foram à Câmara Municipal, na esperança de sensibilizar os vereadores para que barrassem a demolição da escola. Na galeria, durante as votações, comportaram-se com a mesma emoção de quem torce por um time de futebol em final de campeonato.
Não adiantou.
A maioria dos vereadores virou as costas para as galerias. A transação fora aprovada, sancionada pela prefeitura no dia 29 de dezembro. A empresa que adquiriu o imóvel cercou a Martim Francisco e esperava-se a sua demolição a qualquer momento.
Se muitas palavras do rito legislativo já eram estranhas para aqueles estudantes, mais incompreensíveis ainda eram os termos jurídicos, como "liminar" ou "medida cautelar". Aprenderam rapidamente sobre o papel de um promotor público.
Advogados advertiam o grupo de pais, alunos e professores de que, mesmo obtendo uma suspensão temporária da demolição, a batalha seria muito difícil. Afinal, a transação fora aprovada e devidamente sancionada na Câmara Municipal.
O grupo não desistiu e, em novas manifestações, tentou chamar a atenção do novo governo municipal, o que também não seria algo fácil. Com a cidade atolada em dívidas, as enchentes invadindo as ruas, não era de esperar que uma escola conseguisse entrar na agenda de início de mandato da prefeitura.
A essa altura, porém, o movimento de resistência tinha sensibilizado entidades de defesa da educação, meios de comunicação, vereadores, associações comunitárias. Os estudantes não estavam mais sozinhos. Conseguiu-se, na Justiça, adiar por 72 horas a desocupação da escola.
Nesse tempo, a assessoria jurídica da prefeitura coletou uma série de documentos e de avaliações imobiliárias sobre a transação. Daí veio a decisão oficial de tentar desfazer o negócio pela via judicial.
Para dar um toque ainda mais singular a esse movimento, que tinha tudo para ser derrotado, a decisão de desfazer o negócio ocorreu em janeiro, quando a cidade completa 451 anos, nascida exatamente numa escola. É como se fosse uma comemoração involuntária das origens de uma comunidade que vive sufocada pela violência porque, entre outras razões, as pessoas não reverenciam o ensino público.
O que falta é que pais, alunos e professores lutem pela educação como aqueles adolescentes lutaram para que sua escola não fosse demolida.
As aulas voltam à Martim Francisco, mas a batalha não terminou. A questão permanece na Justiça. Os estudantes podem perder. Uma derrota, no entanto, destruirá não apenas um prédio mas um símbolo.
Afinal, aqueles adolescentes, sem saber, fizeram história.
PS - Esse caso nem de longe é um problema paulistano. É antes um caso de tecnologia social a ser estudado pelos educadores de norte a sul do país. O dia em que conseguirmos fazer com que pais, alunos e professores defendam uma escola pública como se ela fosse deles próprios, uma extensão de sua casa, a melhoria da educação será inevitável.

E-mail - gdimen@uol.com.br

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