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São Paulo, domingo, 30 de março de 2003

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AMBIANTE

Em dez anos, foram gastos 76% dos recursos do programa de despoluição; patrimônio natural do Rio continua sujo

US$ 699 mi não limpam baía de Guanabara

MARCOS SÁ CORRÊA
ESPECIAL PARA A FOLHA

Se o Programa de Despoluição da Baía de Guanabara tivesse feito tudo o que prometeu dez anos atrás, certamente haveria hoje no Rio outros bares como o de Célio Oliveira. Pelo cronograma da Agência de Cooperação Internacional do Japão, que entrou com US$ 251 milhões para seu financiamento, 2003 está marcado como prazo para a pesca em suas águas "aumentar 100%", a renda das cinco colônias de pescadores que vivem em suas margens ultrapassar US$ 390 mil por ano e o preço dos terrenos em sua orla disparar, com altas de 8% a 24%.
Mas, com o programa atrasado quase cinco anos numa década, Oliveira ainda exerce o monopólio de um ponto turístico que faria o maior sucesso na zona sul carioca, se ela não estivesse a 50 quilômetros dali. Doze anos atrás, ele se instalou numa praia de Magé, entre a ruína de um ancoradouro do século 19 e o asfalto que chegou neste milênio. De seu balcão, vê-se o Corcovado e o Pão de Açúcar ao longe, mas o litoral é verde, forrado pelos 138,2 km2 do manguezal de Guapimirim, uma área de proteção ambiental.
Sendo o mangue um filtro natural, fregueses do bar entram sem a menor cerimônia no mar cor de café ralo e comem, nas mesas espalhadas sob amendoeiras na areia bege, o peixe frito que chega na rede bem ali em frente. "É um lugar incrível, cheio de vida", diz a engenheira Dora Hees Negreiros. Quando lhe pedem um sinal palpável de que a Guanabara tem remédio, o que ela cita é o pôr-do-sol no bar do Célio, emoldurado por ilhas que garças e biguás ocupam ao entardecer.
Nem por isso o lugar é um atestado de despoluição. Visto assim de perto, qual o resultado dos US$ 698,8 milhões que até agora foram desembolsados no programa? "Para mim, é o lixo", responde Oliveira. E esclarece: "Antes do programa, eu catava nesta praia dez garrafas de plástico por dia. Agora, cato cem".

Mais lixo, sem dúvida
"O lixo aumentou mesmo", reconhece o vice-governador Luiz Paulo Conde, que, desde janeiro, assumiu, como secretário de Meio Ambiente e Desenvolvimento Urbano, a gestão do projeto no governo Rosinha Garotinho. A baía está cercada por 8,2 milhões de pessoas. E elas geram a cada 24 horas cerca de 8.000 toneladas de lixo. No mínimo dez toneladas são despejadas diariamente no mar pelos rios, canais e valões que desembocam nas praias internas da Guanabara.
Do que os serviços de limpeza urbana recolhem, 5.500 toneladas por dia vão para Gramacho, destino de 62% do lixo carioca. Gramacho é um aterro sanitário compartilhado por vários municípios e está afundando lentamente no terreno instável do mangue onde foi construído, na foz do rio Sarapuí, em Duque de Caxias (Baixada Fluminense). Dele, pelas contas de Dora Negreiros, saem "800 mil litros diários de chorume, um caldo ácido e tóxico que escorre para a baía".
Ela dirige o Instituto Baía de Guanabara. É a ONG que mais conhece o programa. Reúne a equipe que o negociou com o governo japonês e com o BID (Banco Interamericano de Desenvolvimento). "Éramos dez. Hoje somos 200 especialistas, incluindo 17 Ph.Ds, além de pescadores e catadores de caranguejo", afirma. Seu presidente, o arquiteto Manuel Sanches, coordenou durante dois anos o planejamento e os acordos internacionais que sustentam a maioria dos projetos, mas teve pouco tempo para implantá-los. Foi exonerado logo na largada pelo governador Leonel Brizola por ter se recusado a fazer contratos sem licitação com empreiteiras.
Com sua saída, o programa acabou entregue à Companhia Estadual de Águas e Esgotos, a Cedae, submergindo numa estatal incapaz de separar água de esgoto em seus próprios canos, contrariando as cláusulas do projeto. Ali, a despoluição se dividiu entre uma sigla impopular, PDBG, e um problema que a população do Rio de Janeiro conhece até demais. Em pesquisas de opinião pública, 93,6% dos entrevistados declaram que a baía é muito suja, 46,7% acham que a sujeira vem do lixo jogado nos rios, 89,6% gostariam que ela fosse limpa e 92,8% propõem o "controle rigoroso" de resíduos domésticos.

Pelo banho de mar
Mas a Cedae dá a impressão de que o PDBG nada tem a ver com isso. "Temo que as pessoas achem muito chata essa história de despoluir a baía", diz Sanches. Para aparecer nas manchetes, o programa precisou se confundir, no verão do ano passado, com o piscinão de Ramos, obra do governo Garotinho que, ambientalmente, não passava de um buraco cheio de cloro numa praia infecta.
Mas, para Sanches, até o equívoco revela o interesse da opinião pública pelo "maior patrimônio natural do Rio de Janeiro". Diz ele: "As pessoas gostaram do piscinão porque querem de volta seu banho de mar. Um piscinão custa cerca de US$ 5 milhões. Ou o dobro disso, contando com o preço da manutenção em dez anos. Para atender a todo mundo, o Estado precisaria fazer pelo menos cem piscinões, que sairiam por US$ 1 bilhão. Por US$ 1 bilhão, seria possível dar condições de balneabilidade à baía inteira".

"Recursos fabulosos"
Os atrasos transformaram o PDBG num caso raro de continuidade administrativa no Brasil. Passou por quatro governos e acaba de ser prorrogado pelo quinto. Deveria estar pronto em 1998. A governadora Rosinha Garotinho agora tem US$ 220,1 milhões e pouco mais de um ano para terminá-lo em julho de 2004. Para cumprir o novo prazo, mais de US$ 80 milhões terão que sair dos cofres estaduais. A maior parte do financiamento externo já saiu e sumiu.
Para atrasar tanto o programa, somou-se inércia com sofreguidão. Ele esteve quatro meses parado em 2002, hibernando durante metade do governo de Benedita da Silva. Antes, Anthony Garotinho usou a publicidade oficial para trombetear que a baía estava despoluída. Agora, na Assembléia Legislativa, há uma CPI farejando o destino dos "recursos fabulosos" enterrados no PDBG.
O deputado Alessandro Calazans, que abriu o inquérito, baseou seu requerimento em três suspeitas. Acha que muitas obras do projeto foram integralmente quitadas com as empreiteiras sem terem sido executadas, que quilômetros de tubulações foram postos no mapa, mas não debaixo da terra, e que compras de R$ 98 milhões, para equipar a estação de tratamento da Alegria, na gestão Anthony Garotinho, foram fechadas sem licitação.
São denúncias que podem agitar a política fluminense, mas dificilmente mexerão no lodo da baía, onde quase US$ 600 milhões do programa estavam reservados a medidas de saneamento, incluindo um anel de caras e vistosas estações de tratamento, sem que a baía deixasse de tragar diariamente 340 toneladas de esgoto "in natura", quatro vezes mais que o volume de esgoto tratado.
O que aconteceu com as estações? "Até agora, são literalmente dinheiro lançado no esgoto, porque elas não foram ligadas às redes de coleta, como estava previsto", explica o professor Luiz Edmundo da Costa Leite, da Escola Politécnica da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro). A estação de São Gonçalo, que destruiu um manguezal e foi inaugurada em meados dos anos 90 pelo governador Marcelo Allencar, ainda não funciona. Nos morros cariocas que passaram pelo programa Favela-Bairro, há 28 estações de tratamento. Nenhuma delas está operando.

Favelização crescente
O PDBG bateu no que Costa Leite chama de "obstáculo estrutural da sociedade". Em outras palavras, a favelização, que avançou depressa enquanto o programa remanchava. Ele já estudou muita baía limpa em países ricos e muita baía suja em países pobres, mas não conhece um só caso em que o problema do esgoto doméstico se resolvesse voluntariamente pelos cidadãos. Por quê? "As pessoas acham que ter água em casa é interesse delas e se livrar do esgoto é interesse público", diz.
Onde as cidades crescem sem controle, um nó técnico estrangula fatalmente os tubos de esgoto. E a baía de Guanabara tem, à sua volta, municípios onde até 70% das construções são irregulares.
Há cerca de 900 favelas na margem oeste, onde fica o município do Rio de Janeiro e seus subúrbios da Baixada Fluminense. Do outro lado -o de Niterói, que é menos populoso-, municípios como São Gonçalo e Itaboraí estão inchando mais 3% ao ano.
Nesse cinturão de informalidade, faltam troncos coletores porque o investimento público não consegue alcançar a urbanização privada. Quando há troncos, ligá-los às redes de captação é sempre mais complicado em bairros onde as ruas são desalinhadas e as casas já estão erguidas. Se existem redes, caberia aos moradores conectar-se ao sistema, o que eles não fazem porque isso implica uma despesa de 300 e tantos reais, "ou seja, adiar a troca da TV". E, em casa que tem esgoto, a conta de água dobra automaticamente.
A favelização pegou o PDBG desprevenido? Não. Estava prevista em seu estudo básico, um calhamaço de 500 folhas em que o governo japonês gastou dois anos e US$ 3 milhões, antes de apadrinhar o projeto. Nele, os técnicos avisavam, em 1994, que, nos 45 rios da bacia hidrográfica da Guanabara, "a principal causa da poluição da água são as atividades humanas diárias e a produção industrial". Nessa ordem.
Na baía, eles constataram que a presença de "contaminantes químicos em peixes e moluscos era menor do que os valores-padrão estabelecidos pela Organização Mundial de Saúde e pela Food and Drug Administration, dos Estados Unidos". Exagerados mesmo eram o índice dos coliformes de esgoto e a maré de lixo doméstico, sinais da "influência significativa das atividades humanas".

Sujar é fácil
Dos 16 municípios que formam esse condomínio de águas, mais da metade requeria "urgentes melhoramentos em seus sistemas de esgotos", recomendava o estudo. E "os problemas ambientais da baía não poderiam ser discutidos sem falar nas favelas", que nos anos 80 haviam avançado 40% no contorno da baía.
Se é difícil limpá-la, sujá-la é muito fácil. Trata-se de uma baía rasa, com 5,7 metros de profundidade média. Tem boca estreita, de 1,6 quilômetro de largura, que no século 16 encantou os colonizadores portugueses em busca de águas mansas e portos abrigados. Seu fundo sobe meio centímetro por ano, pela acumulação de sedimentos que deixaram no leito uma gosma tóxica com quatro metros de espessura média.
Carregada de bactérias que consomem todo o oxigênio disponível no mar, paralisando a decomposição de depósitos orgânicos, ela se estabilizou. Removê-la é contra-indicado. Levantaria metais pesados, como zinco, mercúrio e cobre, aprisionados na massa de lodo e areia.
O relatório japonês menciona mais de uma vez o geólogo Elmo da Silva Amador. Ele é professor da UFRJ e autor de um livro dedicado ao "belo e produtivo" espelho-d'água que hoje é lustrado diariamente por sete toneladas de óleo. "Baía de Guanabara e Ecossistemas Periféricos: Homem e Natureza" condena tudo o que se fez com ela desde que, em 1502, o navegador Pero Lopez de Souza decretou que toda água encontrada ali era "excelente".
O povoamento esgotou a capacidade de regeneração natural da baía, segundo Amador, no fim do Segundo Império, quando o Rio de Janeiro atingiu 500 mil habitantes. Todo sistema que formava a Guanabara foi mutilado. Originalmente, tinha 132 km2 de restingas. Sobraram 28 km2. Era filtrado por 235 km2 de brejos e pântanos. Restaram 75 km2. Abrigava 101 ilhas. Ficaram 65. Aninhava 118 praias. Perdeu 46 para os aterros. Das 24 enseadas, sacos e gamboas que formavam seu litoral de "guirlandas", 15 sumiram em retificações. Ao todo, ela perdeu 29,1% de sua superfície.

Proteção ambiental
Isso feito, em 1989 a Constituição do Rio de Janeiro declarou-a "Área de Proteção Ambiental e Interesse Ecológico Relevante". Parece um título póstumo, mas não é. No meio da baía há um vale submarino com 20 metros de profundidade média. Lá, a força das marés renova as águas regularmente. Nesse canal, que vai do pé do Pão de Açúcar à ilha de Paquetá, o projeto Mamíferos Aquáticos, da Uerj (Universidade Estadual do Rio de Janeiro), está, neste exato momento, trabalhando com a identificação de golfinhos.
Onde o talvegue acaba, começa o mar raso de Guapimirim, local em que Célio Oliveira, "sete dias por semana, faça sol ou não faça chuva", vende cerveja e peixe frito. Ali o manguezal está, desde 1984, formalmente protegido por uma Área de Proteção Ambiental. Apesar de cercada por 10 mil indústrias e 32 estaleiros, a APA de Guapimirim mantém com recursos naturais cerca de 2.000 pessoas, vivendo entre canais e sambaquis. A maioria cata caranguejos, como Juarez Osório Cabral, que nasceu ali mesmo, aos 11 anos herdou o ofício do pai e, aos 35, trabalhando 12 horas por dia, pega até 400 crustáceos por semana.
Vendidos na porta de casa a 50 centavos cada caranguejo, eles lhe dão uma renda mensal de R$ 800. O chefe da APA, Paulo Camacho, garante que basta subir de lancha os braços do manguezal para ver que, onde a maré não chega, existe uma floresta quase intata, com árvores de 15 metros, jacarés, capivaras, lontras, borboletas e 172 espécies de pássaros.

A praia é nossa
Mas, onde a maré chega, Célio Oliveira enfrenta a sujeira como pode. Pendurou nas árvores em volta do bar cartazes avisando: "O lixo é seu, a lixeira é minha, a praia é nossa". E toca, com adolescentes pobres da região, um programa particular de despoluição. Dá aos meninos lanche, cesta básica, camisetas e prêmios de fim de ano em troca dos resíduos que eles recolhem na areia.
Com isso, juntou tanto lixo que, ao lado do bar, construiu uma casa só com garrafas de plástico descartável. Ela tem sala, quarto, banheiro com água corrente e cozinha. Cheias com três quilos de areia, as garrafas viram paredes "capazes de resistir a tiros de pistolas da PM, que veio aqui testar a obra", diz ele. Vazias, formam clarabóias azuladas, cor de PET.
A casa, segundo o construtor, está lá "só para afrontar". Mas, no ano passado, o ambientalista americano Jay Sherman, ex-diretor da fundação que recuperou a baía de Chesapeake, esteve ali para fotografá-la. Numa terra onde um programa de US$ 918,9 milhões chega ao décimo aniversário sem ter muito o que mostrar, os R$ 600 que Oliveira investiu em um mês para se livrar do lixo não deixam de ser uma prova material de que despoluir a baía é questão de vontade.


O jornalista MARCOS SÁ CORRÊA é colunista do site No Mínimo. Foi editor-chefe do "Jornal do Brasil", diretor de Redação de "O Dia", além de colunista das revistas "Veja" e "Época"

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