São Paulo, segunda-feira, 30 de abril de 2001

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MOACYR SCLIAR

Pedacinhos de papel

 "Destruí, rasguei", diz ACM da lista que leu. Brasil, 25.abr.2001 Rasgada a lista , os fragmentos -minúsculos- foram jogados numa cesta de papel. Um ato que, teoricamente, não deveria ter sido testemunhado por ninguém. Mas foi testemunhado, sim. Foi testemunhado por um motoboy que havia trazido um documento qualquer ao Senado. Em busca do destinatário, o rapaz passara pela sala do senador justamente no momento em que este rasgava a lista. O que não chegou a lhe chamar a atenção; afinal, muita gente -não só os políticos- rasgam papéis. Papéis inúteis, papéis inconvenientes -papéis destinados à lata de lixo, do Senado ou da História (com H maiúsculo ou minúsculo). De modo que o motoboy fez sua entrega e foi embora, sem se importar muito com aquilo que vira.
Só nos dias que se seguiram é que começou a se dar conta: aquilo que vira era algo importante, muito mais importante do que ele teria podido imaginar. Os jornais, a tevê, só falavam no assunto. O motoboy, rapaz inteligente, começou a ligar as coisas. E concluiu: os fragmentos jogados na cesta de papel poderiam -se convenientemente reunidos- reconstruir um documento de importância vital. E que seguramente valeria um bom dinheiro. O problema era: como recuperar o conteúdo da cesta? Aquela altura, o serviço de limpeza do Senado sem dúvida já tinha feito sua parte. O conteúdo da cesta tinha sido jogado no lixo.
Mas nem tudo estava perdido. O motoboy lembrava-se de um detalhe: por dentro da cesta havia sido colocado, como é de hábito fazer em tais recipientes, um saco plástico. Ora, a boca desse saco seguramente fora amarrada; portanto os fragmentos ainda poderiam estar juntos. Seria medonho, claro, procurar o tal saco em algum enorme monturo. Mas a recompensa por achá-lo seria fantástica. O motoboy já se via na primeira página de todos os jornais...
Apesar dessa possível glória, o motoboy acabou desistindo da empreitada. Por uma simples razão: ele se sabia um azarado. O mesmo azar que o tornara motoboy, em vez de político importante, funcionaria nesse caso. Ele encontraria o saco, ele recuperaria os fragmentos. Mas quando fosse reconstituir o documento notaria a falta de um pedacinho de papel, de alguma maneira perdido. E o pedacinho de papel extraviado seria aquele que definiria o voto de alguém, com a palavra "sim" -ou a palavra "não".
Ainda que potencial, essa dúvida foi suficiente para sepultar de vez todas suas ilusões. Ele continuaria motoboy, entregando documentos aos quais jamais teria acesso. Aos quais jamais lhe interessaria ter acesso.


O escritor Moacyr Scliar escreve nesta coluna, às segundas-feiras, um texto de ficção baseado em notícias publicadas no jornal.




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