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MOACYR SCLIAR
Pedacinhos de papel
"Destruí, rasguei", diz ACM da lista
que leu.
Brasil, 25.abr.2001
Rasgada a lista , os fragmentos -minúsculos- foram jogados numa cesta de papel.
Um ato que, teoricamente, não
deveria ter sido testemunhado
por ninguém. Mas foi testemunhado, sim. Foi testemunhado
por um motoboy que havia trazido um documento qualquer ao
Senado. Em busca do destinatário, o rapaz passara pela sala do
senador justamente no momento
em que este rasgava a lista. O que
não chegou a lhe chamar a atenção; afinal, muita gente -não só
os políticos- rasgam papéis. Papéis inúteis, papéis inconvenientes -papéis destinados à lata de
lixo, do Senado ou da História
(com H maiúsculo ou minúsculo). De modo que o motoboy fez
sua entrega e foi embora, sem se
importar muito com aquilo que
vira.
Só nos dias que se seguiram é
que começou a se dar conta: aquilo que vira era algo importante,
muito mais importante do que ele
teria podido imaginar. Os jornais,
a tevê, só falavam no assunto. O
motoboy, rapaz inteligente, começou a ligar as coisas. E concluiu: os fragmentos jogados na
cesta de papel poderiam -se convenientemente reunidos- reconstruir um documento de importância vital. E que seguramente valeria um bom dinheiro. O
problema era: como recuperar o
conteúdo da cesta? Aquela altura,
o serviço de limpeza do Senado
sem dúvida já tinha feito sua parte. O conteúdo da cesta tinha sido
jogado no lixo.
Mas nem tudo estava perdido.
O motoboy lembrava-se de um
detalhe: por dentro da cesta havia
sido colocado, como é de hábito
fazer em tais recipientes, um saco
plástico. Ora, a boca desse saco seguramente fora amarrada; portanto os fragmentos ainda poderiam estar juntos. Seria medonho,
claro, procurar o tal saco em algum enorme monturo. Mas a recompensa por achá-lo seria fantástica. O motoboy já se via na
primeira página de todos os jornais...
Apesar dessa possível glória, o
motoboy acabou desistindo da
empreitada. Por uma simples razão: ele se sabia um azarado. O
mesmo azar que o tornara motoboy, em vez de político importante, funcionaria nesse caso. Ele encontraria o saco, ele recuperaria
os fragmentos. Mas quando fosse
reconstituir o documento notaria
a falta de um pedacinho de papel,
de alguma maneira perdido. E o
pedacinho de papel extraviado
seria aquele que definiria o voto
de alguém, com a palavra "sim"
-ou a palavra "não".
Ainda que potencial, essa dúvida foi suficiente para sepultar de
vez todas suas ilusões. Ele continuaria motoboy, entregando documentos aos quais jamais teria
acesso. Aos quais jamais lhe interessaria ter acesso.
O escritor Moacyr Scliar escreve nesta
coluna, às segundas-feiras, um texto de
ficção baseado em notícias publicadas
no jornal.
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