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São Paulo, segunda-feira, 30 de junho de 2003

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MOACYR SCLIAR

Cão sequestrado

 Assaltante rouba pit bull em SP. Cotidiano, 24.jun.03

Depois de dias de ansiedade, o cão sequestrado foi devolvido, são e salvo. Mas a alegria do reencontro não durou muito. Logo ficou claro que o pit bull já não era o mesmo. Alguma coisa tinha acontecido com ele.
O que já dava para desconfiar a partir do próprio episódio do sequestro. Pit bulls são tradicionalmente cães de guarda, que devem reagir vigorosamente à presença de estranhos. Mas isso não acontecera. Ele se deixara conduzir docilmente por um sujeito que nunca vira. Tão pouco escapara do cativeiro, a exemplo de cães que não raro percorrem trajetos de vários quilômetros para voltar à casa.
E agora, retornando ao lar onde fora criado, não mostrava qualquer alegria, qualquer entusiasmo. Nem sombra do animal vigoroso e alegre que fora até então. Pelo contrário, arrastava-se pelos cantos ou então ficava horas deitado, o olhar perdido. Recusava até a comida. Não latia; de vez em quando, soltava um dorido uivo.
Estaria doente? Teria, durante o cativeiro, se contaminado com uma bactéria ou algo semelhante? O veterinário que o examinou disse que não: o pit bull estava em perfeitas condições de saúde. De saúde física, pelo menos. Porque era evidente que passava por um grave distúrbio emocional. E aos poucos a certeza foi emergindo: o pit bull estava sofrendo da síndrome de Estocolmo. Como aqueles reféns que, em 1973, apegaram-se aos assaltantes do banco sueco, recusando-se até a serem libertados, o cão agora sentia falta de seu sequestrador.
O que fazer? Um vizinho deu uma idéia: tratar a doença com a própria doença. O cão seria entregue ao sequestrador, que aliás também se afeiçoara ao animal, descrevendo-o como "muito bonito". Passaria uns tempos lá e depois seria -mediante combinação, obviamente- sequestrado de novo, mas desta vez pelo dono legítimo, aquele que o tinha comprado por uma razoável quantia.
O problema é encontrar o sequestrador, que, como é habitual entre sequestradores, desapareceu. Amigos têm sugerido colocar avisos em postes de eletricidade, como se faz quando some um animal de estimação. No caso ali estaria a foto do pit bull com um recado tipo "Amigo sequestrador, volte. Sinto falta de você e quero lhe ver", ou algo no estilo. Não se sabe se vai funcionar, mas tudo indica que vale a pena tentar. A síndrome de Estocolmo ainda é uma incógnita. E, quando ocorre em pit bulls, uma incógnita maior ainda.


Moacyr Scliar escreve às segundas-feiras, nesta coluna, um texto de ficção baseado em matérias publicadas no jornal.


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