São Paulo, domingo, 30 de agosto de 1998

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ABASTECIMENTO
Em 1997, 8,2 bilhões de litros chegaram à população brasileira sem ser beneficiado e sem passar pela inspeção sanitária do governo
41% da produção de leite é clandestina

ARMANDO ANTENORE
da Reportagem Local

Compra e venda de gado doente, laticínios contaminados, falsificação de carimbos da inspeção sanitária, currais de aparência medieval escondidos na periferia das metrópoles.
É um mundo muitas vezes sombrio o que se revela por trás de um inocente copo de leite cru -alimento distribuído à larga em todo o país, que nada tem a ver com os leites A, B e C.
Trata-se de comércio clandestino, proibido no Brasil por ameaçar a saúde pública.
A lei manda que, antes do consumo, o leite de vaca e seus derivados passem pela fiscalização sanitária do governo. O crivo deve ocorrer nas usinas de beneficiamento, onde o produto líquido e ainda cru precisa se submeter à pasteurização ou outros processos industriais que incluem o aquecimento a altas temperaturas.
A Organização Mundial da Saúde recomenda o mesmo. É que o leite está entre os meios mais propícios à proliferação de microorganismos, destrutíveis pelo calor.
Se não atender regras rígidas de produção, embalagem, transporte e armazenamento, pode transmitir um número razoável de doenças, da tuberculose às diarréias.
O zelo da lei, no entanto, nem sempre traz efeitos práticos. Recente trabalho do Pensa -programa da Universidade de São Paulo que estuda o agrobusiness brasileiro- aponta para um quadro alarmante: 41% do leite bovino que se produziu no país em 1997 tinha origem clandestina.
Foram 8,2 bilhões de litros, que chegaram até o consumidor sem passar pelas usinas de beneficiamento, sem pagar impostos e, o mais perigoso, sem o aval da inspeção sanitária.
Apresentaram-se de três modos principais: na forma líquida (6 bilhões de litros), como queijo (200 mil toneladas) e como iogurte ou bebida láctea (80 mil toneladas).
O estudo não conseguiu determinar com exatidão de onde veio tanto leite. "Mas, empiricamente, se sabe que boa parte saiu de pequenas propriedades rurais, espalhadas por todos os Estados", afirma o professor de agrobusiness Marcos Jank, um dos responsáveis pelo trabalho.
O pesquisador estima que, dos 8,2 bilhões de litros informais, aproximadamente 6% acabaram consumidos dentro das próprias terras em que se deu a ordenha. O resto migrou para o comércio.
Um negócio, aliás, nada desprezível. Ainda de acordo com Jank, o leite clandestino gerou um faturamento de R$ 3,8 bilhões no ano passado -contra R$ 9 bilhões do mercado legal.
Outra constatação importante é a de que a informalidade está crescendo. Em 1990, beirava os 5 bilhões de litros. Em meados da década, já alcançava a casa dos 7 bilhões (veja quadro nesta página).
O governo federal e os produtores formais avalizam os números do Pensa.
"O estudo espelha bem a realidade. Infelizmente, o leite fora-da-lei ainda nutre um mercado tão extenso quanto o da carne clandestina, o que sem dúvida representa uma séria ameaça à saúde pública", diz Francisco Sergio Ferreira Jardim, delegado do Ministério da Agricultura em São Paulo.
"O problema existe há muito tempo, não pára de crescer e tudo acontece nas barbas das autoridades", critica Jorge Rubez, presidente da Associação Leite Brasil, que agrega 25 mil produtores.

Omissão
Durante quatro semanas, a Folha rastreou o comércio ilegal de laticínios. Comprou três amostras de leite cru em cidades diferentes de São Paulo e as encaminhou para análise laboratorial. As três acusaram contaminação.
A distribuição clandestina do produto na forma líquida, por sinal, é das mais notórias. Faz-se às claras, quase sempre sem refrigeração, em peruas, carroças e até motocicletas.
Muitos vendedores negociam o alimento a granel. Transportam-no dentro de latões, e o comprador o recolhe com vasilhas. Outras vezes, a bebida chega em embalagens sem rótulo (normalmente, sacos plásticos ou garrafas de refrigerante).
Quem compra não sabe que o comércio é proibido. Quem vende sabe -e não gosta de se identificar para repórteres.
Mas o que parece apenas caso de polícia se mostra, numa apreciação mais cuidadosa, um fenômeno social complexo.
Em geral, os leiteiros informais ignoram os riscos sanitários do produto que comercializam. São criadores modestos, não organizados e de baixa escolaridade, que burlam a lei para sobreviver. Se vendessem o leite às usinas, acabariam se inviabilizando comercialmente, porque ganhariam menos do que lucram com a venda ilegal.
A maioria dos compradores também não dispõe de informações mais sofisticadas sobre segurança alimentar. Consome o leite cru por julgá-lo saudável e ainda contar com a vantagem de o produtor informal vender fiado.
As áreas do governo que deveriam orientar a população, dar assistência técnica aos leiteiros e fiscalizar o cumprimento da lei reconhecem a gravidade do problema, mas frequentemente se omitem. Abraçam-se à justificativa de praxe: falta de dinheiro.



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