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ABASTECIMENTO
Em 1997, 8,2 bilhões de litros chegaram à população brasileira sem ser beneficiado e sem passar pela inspeção sanitária do governo
41% da produção de leite é clandestina
ARMANDO ANTENORE
da Reportagem Local
Compra e venda de gado doente,
laticínios contaminados, falsificação de carimbos da inspeção sanitária, currais de aparência medieval escondidos na periferia das
metrópoles.
É um mundo muitas vezes sombrio o que se revela por trás de um
inocente copo de leite cru -alimento distribuído à larga em todo
o país, que nada tem a ver com os
leites A, B e C.
Trata-se de comércio clandestino, proibido no Brasil por ameaçar a saúde pública.
A lei manda que, antes do consumo, o leite de vaca e seus derivados passem pela fiscalização sanitária do governo. O crivo deve
ocorrer nas usinas de beneficiamento, onde o produto líquido e
ainda cru precisa se submeter à
pasteurização ou outros processos
industriais que incluem o aquecimento a altas temperaturas.
A Organização Mundial da Saúde recomenda o mesmo. É que o
leite está entre os meios mais propícios à proliferação de microorganismos, destrutíveis pelo calor.
Se não atender regras rígidas de
produção, embalagem, transporte
e armazenamento, pode transmitir um número razoável de doenças, da tuberculose às diarréias.
O zelo da lei, no entanto, nem
sempre traz efeitos práticos. Recente trabalho do Pensa -programa da Universidade de São Paulo
que estuda o agrobusiness brasileiro- aponta para um quadro
alarmante: 41% do leite bovino
que se produziu no país em 1997
tinha origem clandestina.
Foram 8,2 bilhões de litros, que
chegaram até o consumidor sem
passar pelas usinas de beneficiamento, sem pagar impostos e, o
mais perigoso, sem o aval da inspeção sanitária.
Apresentaram-se de três modos
principais: na forma líquida (6 bilhões de litros), como queijo (200
mil toneladas) e como iogurte ou
bebida láctea (80 mil toneladas).
O estudo não conseguiu determinar com exatidão de onde veio
tanto leite. "Mas, empiricamente,
se sabe que boa parte saiu de pequenas propriedades rurais, espalhadas por todos os Estados",
afirma o professor de agrobusiness Marcos Jank, um dos responsáveis pelo trabalho.
O pesquisador estima que, dos
8,2 bilhões de litros informais,
aproximadamente 6% acabaram
consumidos dentro das próprias
terras em que se deu a ordenha. O
resto migrou para o comércio.
Um negócio, aliás, nada desprezível. Ainda de acordo com Jank, o
leite clandestino gerou um faturamento de R$ 3,8 bilhões no ano
passado -contra R$ 9 bilhões do
mercado legal.
Outra constatação importante é
a de que a informalidade está crescendo. Em 1990, beirava os 5 bilhões de litros. Em meados da década, já alcançava a casa dos 7 bilhões (veja quadro nesta página).
O governo federal e os produtores formais avalizam os números
do Pensa.
"O estudo espelha bem a realidade. Infelizmente, o leite fora-da-lei ainda nutre um mercado
tão extenso quanto o da carne
clandestina, o que sem dúvida representa uma séria ameaça à saúde pública", diz Francisco Sergio
Ferreira Jardim, delegado do Ministério da Agricultura em São
Paulo.
"O problema existe há muito
tempo, não pára de crescer e tudo
acontece nas barbas das autoridades", critica Jorge Rubez, presidente da Associação Leite Brasil,
que agrega 25 mil produtores.
Omissão
Durante quatro semanas, a Folha rastreou o comércio ilegal de
laticínios. Comprou três amostras
de leite cru em cidades diferentes
de São Paulo e as encaminhou para análise laboratorial. As três acusaram contaminação.
A distribuição clandestina do
produto na forma líquida, por sinal, é das mais notórias. Faz-se às
claras, quase sempre sem refrigeração, em peruas, carroças e até
motocicletas.
Muitos vendedores negociam o
alimento a granel. Transportam-no dentro de latões, e o comprador o recolhe com vasilhas.
Outras vezes, a bebida chega em
embalagens sem rótulo (normalmente, sacos plásticos ou garrafas
de refrigerante).
Quem compra não sabe que o
comércio é proibido. Quem vende
sabe -e não gosta de se identificar para repórteres.
Mas o que parece apenas caso de
polícia se mostra, numa apreciação mais cuidadosa, um fenômeno social complexo.
Em geral, os leiteiros informais
ignoram os riscos sanitários do
produto que comercializam. São
criadores modestos, não organizados e de baixa escolaridade, que
burlam a lei para sobreviver. Se
vendessem o leite às usinas, acabariam se inviabilizando comercialmente, porque ganhariam menos do que lucram com a venda
ilegal.
A maioria dos compradores
também não dispõe de informações mais sofisticadas sobre segurança alimentar. Consome o leite
cru por julgá-lo saudável e ainda
contar com a vantagem de o produtor informal vender fiado.
As áreas do governo que deveriam orientar a população, dar assistência técnica aos leiteiros e fiscalizar o cumprimento da lei reconhecem a gravidade do problema,
mas frequentemente se omitem.
Abraçam-se à justificativa de praxe: falta de dinheiro.
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