São Paulo, domingo, 30 de novembro de 1997.



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As vítimas de Lolita

da Revista da Folha

Na primeira vez que Marco Antônio Viana viu Marta*, sentiu "uma coisa diferente". Magra, cabelos loiríssimos e olhar triste, ela se destacava entre as outras crianças que brincavam nos campos de trigo da fazenda. Era 1994. Ela tinha 11 anos; ele, 27.
Demorou quase dois anos até que essa atração inicial virasse namoro, devidamente aprovado pela família da garota, que então estudava na sétima série de uma escola estadual na pequena Quedas do Iguaçu, cidade do interior do Paraná.
Os 900 quilômetros que separam São Paulo da casa de Marta nunca foram problema para Marco, que a cada feriado se manda para o Paraná dirigindo seu Apollo 91 -seu salário como pesquisador de banco de dados não é suficiente para as passagens aéreas.
Nem os 17 anos de diferença são empecilho para ele: "Quando estamos juntos, rimos muito. Eu viro um pouco criança e ela, um pouco adulta."
Os dois trocam cartas sempre e já viajaram juntos, escoltados pela mãe da menina. "É difícil pra ela porque é o seu primeiro namoro e pra mim porque nunca me envolvi com alguém tão novo", diz.
Exceções cada vez mais comuns nesses tempos de adolescência prematura, casos como o de Marco têm ocupado espaço em jornais e TV nos últimos meses. Em outubro, uma professora norte-americana de 35 anos foi condenada a seis meses de prisão por ter transado com um ex-aluno de 13 anos. No Rio, o médico Cláudio Freire, 29, apelou à Justiça este mês para poder casar-se com a namorada que está grávida -ela tem 16 anos. No ano passado, o encanador Márcio Luís de Carvalho, 29, foi processado -e depois absolvido pelo Supremo Tribunal Federal (STF)- por ter transado com Maria Adelaine Noronha, na época com 12 anos.
Por lei, esses romances são condenados. Se tivesse mantido relações sexuais com a namorada, Marco poderia acabar na cadeia por "crime de violência presumida". O artigo 224 do Código Penal "presume" haver estupro sempre que um homem, pelo menos cinco anos mais velho, mantém relações sexuais com uma garota de menos de 14 anos, mesmo com o seu consentimento. No Brasil, a pena só existe quando a vítima é mulher e, por isso, a professora norte-americana não correria riscos por aqui.
A polêmica decisão do ministro Marco Aurélio de Mello, do STF, balançou a sociedade. Mello decidiu pelo habeas corpus do encanador, por entender que não houve constrangimento (pressão) do "agressor" sobre a "vítima" -ela havia dito que transou com Márcio porque "pintou uma vontade".
Mello considera o nosso Código Penal defasado. Com o alto nível de informação dos adolescentes e com um ambiente social cada vez mais aberto, ele diz que temos pelo menos de admitir que os adolescentes de hoje são diferentes. O ministro sugere um limite de 12 anos para a aplicação da sentença de violência presumida. "Quando esse limite caiu de 16 para 14, na década de 40, a sociedade também escandalizou-se", afirma.
O advogado criminalista Antonio Claudio Mariz de Oliveira concorda com o ministro e diz que "a mudança dos costumes permitiu às mulheres terem conhecimento de sua sexualidade mais cedo".
A questão é, no mínimo, polêmica. A deputada federal Marta Suplicy (PT-SP), conhecida por suas posições liberais, foi radicalmente contra a decisão do STF. "Uma menina de 12 anos é muito diferente de uma de 14. Naquela época, eu não tive dúvida em julgar o encanador culpado de estupro. Uma menina de 12 anos é sempre uma menina, o que não é o caso das adolescentes de 14 a 16", diz Marta.
A deputada e sexóloga acredita que cada caso deveria ser analisado separadamente. Sobre o namoro do médico Cláudio Freire com a estudante Roberta*, a deputada é mais condescendente. "Ninguém garante que uma relação dessas não pode dar certo. Baseado em quê a sociedade pode impedi-la?", diz.
Quando Claúdio Freire conheceu Roberta, em 1996, ele tinha 29 anos e já era neurocirurgião. Ela tinha 14 e estudava na 8ª série de um tradicional colégio carioca.
Ele esperou o curso de anatomia acabar para se aproximar da então ex-aluna. O namoro começou no dia 13 de julho de 1996, em uma festa no salão do luxuoso condomínio na Lagoa (zona sul), onde Roberta mora. "Ela tinha chamado a minha atenção desde o início do curso, mas eu não queria confusão. Com o fim das aulas, achei que não haveria problemas, mas não imaginei que ela só tinha 14 anos", diz Cláudio, que mora com os pais em um apartamento em Niterói (13 km do Rio).
Os pais da garota temiam o namoro desde o início, mas acabaram aceitando depois que Cláudio "garantiu ter boas intenções".
A situação mudou depois que Roberta contou à mãe que tinha relações sexuais com o namorado. Os pais proibiram os encontros e passaram a vigiá-la. Houve brigas, agressões físicas, fugas e terapia familiar. Cláudio e Roberta voltaram a namorar, mas só nas tardes de sábado e domingo, no playground do prédio.
No dia 17 de maio, depois de uma briga com a mãe, Roberta chegou a ser internada em uma clínica psiquiátrica. Em julho, foi morar com a avó, mas ela também não aprovava o namoro.
No último dia 13, em depoimento na 1ª Vara da Infância e da Juventude no Rio, Roberta pôs fim ao namoro de um ano e quatro meses: disse que o namoro acabou, só Cláudio não percebeu.
Diante dessas últimas declarações, a Justiça arquivou o pedido de casamento de Cláudio. "Estou psicologicamente arrasado. Levei um fora oficial, público e não quero mais falar nisso. Preciso levar a minha vida", disse o médico à Revista na terça-feira passada.
Roberta e os pais também não falam sobre o caso. No seu prédio, os porteiros dizem que a família foi viajar e "não tem previsão de volta".
A decisão dos pais de Roberta parece antiquada, mas há alguns anos era normal casar-se em plena adolescência. A jornalista Elena Iacopi Gonçalves Côrtes, 50, casou-se aos 15 anos -ele tinha 22. Dez anos depois, já tinha cinco filhos. "Meu casamento mais parecia uma primeira comunhão", brinca Elena, que levou bonecas para a lua-de-mel. A jornalista, casada até hoje, não tinha a menor noção sobre o que poderia acontecer na noite de núpcias. "Eu achava que abraçar e beijar engravidava."
Pode parecer paradoxal que, com o avanço do feminismo, a sexualidade adolescente tenha se tornado mais tabu. O ginecologista Carlos Alberto Diêgoli explica: "Casar cedo era a única perspectiva de vida das mulheres e uma forma de contenção moral, resguardando as adolescentes de sua própria libido que aflorava." Ou seja, reconhecia-se que uma menina de 13 anos tinha apetite sexual e, por isso, casava-se a filha logo, antes que "ela desandasse". Agora, a discussão é: até que ponto uma adolescente tem condições de decidir sobre a própria sexualidade, quando se envolve com um homem mais velho?
Diêgoli, que coordena o Programa de Atenção às Vítimas do Abuso Sexual da USP (Pavas), concorda que as mulheres estão amadurecendo cada vez mais cedo -a cada geração, a primeira menstruação tem acontecido seis meses antes-, mas diz que uma gravidez na adolescência interrompe bruscamente um ciclo e expõe a menina a riscos de saúde evitáveis.
A psicóloga Ana Helena Campos, da USP, concorda. "Daqui a pouco, a adolescência vai desaparecer. Se o limite previsto em lei baixar demais, muitas pessoas vão sair da infância direto para o mundo adulto, sem passar pela fase de transição", diz Ana Helena.
Quem abreviou esse período se arrepende? A resposta é não, pelo menos na família Peçanha, de Piracaia, interior de São Paulo. Aos 50 anos, Vanda já é bisavó. Sua filha, Claudia, 32, é avó e a neta, Laura, 17, é mãe de um menino de um ano e oito meses. As três tiveram filhos cedo: Vanda engravidou aos 15; Claudia, aos 14; Laura, aos 15. "Acho normal ter sido mãe aos 14 anos. Eu não me sentia mais uma menina", conta Claudia, que começou a namorar aos 12 anos um rapaz de 24. "Foi amor à primeira vista", orgulha-se.
Os amigos dele riam da situação, porque Claudia parecia um menino: muito magra, usava cabelos curtos e mal tinha seios. Quando engravidou, o namoro acabou. "Ele tinha medo de se envolver demais com uma menina tão nova", diz.
Vanda, a mãe de Claudia, quis ir à polícia dar queixa do ex-namorado. "Mamãe acreditava que ele tinha me enganado, mas eu disse que fiz tudo por livre e espontânea vontade", conta Claudia. Sobre a gravidez também precoce da filha, ela diz: "Eu só acho que a Laura poderia ter esperado mais um pouco, para poder terminar os estudos".
A psicóloga Roseli Sayão, colunista do Folhateen, alerta para um perigo menos conhecido: o de o adulto acabar "machucado". "Nessa fase, o adolescente se apaixona por idéias e as pessoas mais velhas tornam-se alvo de referências e idealizações", diz.
Quando Maria Trindade, aos 13 anos, namorou Fernando, 25, nem estava muito apaixonada. Mesmo assim, seus pais ficaram preocupados. "Ficamos muito apreensivos por causa da diferença de idade. Meu marido ficou maluco, afinal, o namorado já era um homem", conta Márcia Trindade, mãe de Maria.
Seu primeiro passo foi confiar na filha e lembrá-la que os limites ainda valiam, apesar de ela estar namorando uma pessoa mais velha. "Continuamos a controlá-la como devíamos, ou seja, como uma adolescente de 13 anos", lembra.
Mas a paixão passou logo, durou um mês e meio. "Eu não estou mais a fim. Ele ainda liga, mas eu sempre dou um jeito de escapar", diz Maria.
Pode não ser regra, mas a "lição Lolita" aconteceu também com Cláudio e Marco. Como o personagem criado pelo escritor russo Vladimir Nabokov (1899-1977), os homens nessas histórias acabaram levando a pior.
O médico Cláudio Freire ainda carrega na pasta preta de couro as cartas de Roberta, com corações desenhados ao redor das páginas e os bilhetes de "eu te amo". E Marco está contando os dias para o próximo feriado, quando espera voltar a Quedas do Iguaçu para reconquistar sua "namorada dos campos de trigo". Há seis meses, a menina mandou uma carta terminando o namoro, mas ele avisa que "não desistiu".
os nomes assinalados com * são fictícios
(CRISTINA GRILLO, IZABELA MOI e MARIANA SGARIONI)



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