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DANUZA LEÃO
A cruel (falta de) memória
Quando ele era pequeno, tentava brilhar em tudo
o que fazia, sempre para agradar
alguém.
Um dia resolveu virar atleta e
abriu mão das coisas mais normais da vida de um jovem para
chegar lá. Deixava de ir ao cinema ou a uma festa porque tinha
que dormir cedo, tentava ganhar
todas as medalhas possíveis, e
quando conseguia e ouvia os
aplausos do público, se sentia plenamente realizado.
Quando ficou adulto, continuou se esforçando para vencer
na vida, desta vez para ter sucesso
e dinheiro. Entendeu cedo que
para isso precisava ter os amigos
certos; assim sendo, mudou seus
critérios sobre a amizade e trocou
de amigos, claro.
Casou com a mulher certa - já
dentro desses novos critérios-,
que ficou amiga das mulheres dos
seus novos amigos -o que faz
parte do jogo- e foi chegando lá.
Começou com um dois-quartos-e-sala e acabou numa casa com
piscina; dali para uma outra, de
campo, e mais uma, de praia, foi
só uma questão de tempo. O carro
-os carros- já era importado, e
a suprema glória foi quando
mandou blindá-los. Como ele a-do-ra-va dizer que foi o-bri-ga-do
a mandar blindar os carros:
maior símbolo de status, impossível. Os filhos cresceram, foram estudar no exterior, e a pelada dos
sábados foi trocada pelo golfe; como esforço intelectual, o máximo
que fazia era acompanhar os índices das bolsas de valores do
mundo.
Um dia seu vizinho de condomínio da casa de praia apareceu
com uma lancha, e ele logo comprou a dele: maior e mais veloz,
evidentemente. Passou a comer só
saladas, fazia musculação três vezes por semana e os amigos diziam que ele parecia um garotão,
que glória.
Mas havia um problema: como
se destacar na multidão se as
grandes marcas de roupas, relógios e carros são sempre as mesmas? De que adianta ter uma
BMW azul-marinho se o vizinho
tem uma igual? Aí, comprou um
helicóptero -o mais mais de todos- só para matar de inveja os
amigos.
Onde ir nas férias virou outro
problema: tinha que ser para um
país muito estranho e muito original, o que fez com que o mundo
fosse ficando cada vez menor, e a
vida, cada vez mais difícil.
Nas festas, sua mulher tinha
que usar o vestido mais espetacular, as pérolas de seu colar tinham
de ser maiores do que as de todas
as outras, e quando dava um jantar a produção era digna de
Hollywood. Aliás, de Hollywood
não: daquelas de um xeque árabe
dono de oceanos de petróleo. O
caviar -fresco- chegava em potes de vidro, pois essa iguaria (ele
aprendeu) não pode to-car em nenhum metal, nem que seja ouro, e
deve ser comida em colher de madrepérola, que tal? E contava isso
para todos os seus convidados,
claro; se não, qual a graça?
Mas o tempo passou, e numa
noite de sexta-feira ele, tomando
um uísque sozinho em casa, começou a pensar na vida e nos sonhos que tinha quando era jovem, séculos atrás.
Naquele tempo, quando ia às
festas dos meninos mais riquinhos, tinha um sonho: se um dia
tivesse dinheiro, iria encomendar
uma enorme bandeja de canapês
e outra de doces caramelados para comer sozinho, na frente da televisão. Detalhe: sozinho para
não ter que oferecer um único a
ninguém, coisa mesmo de criança. Lembrou das pescarias que,
ainda menino, fazia com um tio
que morava numa cidade do litoral. Seu sonho de consumo, que
parecia inatingível, era ter um
Fusca, vê se pode.
Ele e esse tio costumavam sair
antes do dia amanhecer para pescar; iam numa canoa, levavam
uns pães dormidos, e quando a
canoa atravessava a arrebentação ele ficava em pé, olhava o mar
e sabia exatamente onde estavam
os peixes. O tio, só de olhar o céu e
sentir o vento na pele, sabia se no
dia seguinte iria chover ou fazer
sol; era seu herói, e tudo o que ele
queria era ser como ele, quando
crescesse. Como um pensamento
leva a outro, lembrou da lancha
que usava no máximo dez vezes
por ano, suspirou e voltou a lembrar do tio.
Tio Orlando; será que ele ainda
está vivo?
E-mail: danuza.leao@uol.com.br
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