São Paulo, domingo, 30 de dezembro de 2001

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DANUZA LEÃO

A cruel (falta de) memória

Quando ele era pequeno, tentava brilhar em tudo o que fazia, sempre para agradar alguém.
Um dia resolveu virar atleta e abriu mão das coisas mais normais da vida de um jovem para chegar lá. Deixava de ir ao cinema ou a uma festa porque tinha que dormir cedo, tentava ganhar todas as medalhas possíveis, e quando conseguia e ouvia os aplausos do público, se sentia plenamente realizado.
Quando ficou adulto, continuou se esforçando para vencer na vida, desta vez para ter sucesso e dinheiro. Entendeu cedo que para isso precisava ter os amigos certos; assim sendo, mudou seus critérios sobre a amizade e trocou de amigos, claro.
Casou com a mulher certa - já dentro desses novos critérios-, que ficou amiga das mulheres dos seus novos amigos -o que faz parte do jogo- e foi chegando lá.
Começou com um dois-quartos-e-sala e acabou numa casa com piscina; dali para uma outra, de campo, e mais uma, de praia, foi só uma questão de tempo. O carro -os carros- já era importado, e a suprema glória foi quando mandou blindá-los. Como ele a-do-ra-va dizer que foi o-bri-ga-do a mandar blindar os carros: maior símbolo de status, impossível. Os filhos cresceram, foram estudar no exterior, e a pelada dos sábados foi trocada pelo golfe; como esforço intelectual, o máximo que fazia era acompanhar os índices das bolsas de valores do mundo.
Um dia seu vizinho de condomínio da casa de praia apareceu com uma lancha, e ele logo comprou a dele: maior e mais veloz, evidentemente. Passou a comer só saladas, fazia musculação três vezes por semana e os amigos diziam que ele parecia um garotão, que glória.
Mas havia um problema: como se destacar na multidão se as grandes marcas de roupas, relógios e carros são sempre as mesmas? De que adianta ter uma BMW azul-marinho se o vizinho tem uma igual? Aí, comprou um helicóptero -o mais mais de todos- só para matar de inveja os amigos.
Onde ir nas férias virou outro problema: tinha que ser para um país muito estranho e muito original, o que fez com que o mundo fosse ficando cada vez menor, e a vida, cada vez mais difícil.
Nas festas, sua mulher tinha que usar o vestido mais espetacular, as pérolas de seu colar tinham de ser maiores do que as de todas as outras, e quando dava um jantar a produção era digna de Hollywood. Aliás, de Hollywood não: daquelas de um xeque árabe dono de oceanos de petróleo. O caviar -fresco- chegava em potes de vidro, pois essa iguaria (ele aprendeu) não pode to-car em nenhum metal, nem que seja ouro, e deve ser comida em colher de madrepérola, que tal? E contava isso para todos os seus convidados, claro; se não, qual a graça?
Mas o tempo passou, e numa noite de sexta-feira ele, tomando um uísque sozinho em casa, começou a pensar na vida e nos sonhos que tinha quando era jovem, séculos atrás.
Naquele tempo, quando ia às festas dos meninos mais riquinhos, tinha um sonho: se um dia tivesse dinheiro, iria encomendar uma enorme bandeja de canapês e outra de doces caramelados para comer sozinho, na frente da televisão. Detalhe: sozinho para não ter que oferecer um único a ninguém, coisa mesmo de criança. Lembrou das pescarias que, ainda menino, fazia com um tio que morava numa cidade do litoral. Seu sonho de consumo, que parecia inatingível, era ter um Fusca, vê se pode.
Ele e esse tio costumavam sair antes do dia amanhecer para pescar; iam numa canoa, levavam uns pães dormidos, e quando a canoa atravessava a arrebentação ele ficava em pé, olhava o mar e sabia exatamente onde estavam os peixes. O tio, só de olhar o céu e sentir o vento na pele, sabia se no dia seguinte iria chover ou fazer sol; era seu herói, e tudo o que ele queria era ser como ele, quando crescesse. Como um pensamento leva a outro, lembrou da lancha que usava no máximo dez vezes por ano, suspirou e voltou a lembrar do tio.
Tio Orlando; será que ele ainda está vivo?

E-mail: danuza.leao@uol.com.br



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