São Paulo, segunda-feira, 30 de dezembro de 2002

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MOACYR SCLIAR

Duas histórias de Ano Novo

1. Um sonho para 2003

Cidade da Califórnia vai a venda na internet. O vilarejo de Bridgeville está sendo oferecido na página de leilão. A oferta mínima é de US$ 775 mil dólares. Folha Online, 26.dez.2002

Este é o sonho da minha vida, pensou ele, quando viu o anúncio da venda de Bridgeville. Vilarejo minúsculo -na verdade, umas poucas casas abandonadas- mas não precisava mais do que isso. Bridgeville seria para ele como a Pasárgada de Manuel Bandeira -não, melhor que Pasárgada. Porque em Pasárgada tudo o que o poeta conseguiria era ser amigo do rei. Em Bridgeville ele seria quase um rei: seria o prefeito. E também o presidente da Câmara de Vereadores. E o único vereador. Reeleito por mandatos sem conta, já que ele seria também o único eleitor. Seria o dono do único jornal.
Cujos editoriais, naturalmente, só o elogiariam. O noticiário seria inteiramente dedicado ao seu cotidiano: "O dono de Bridgeville acordou sorrindo". "O dono de Bridgeville acha que o tempo está ótimo." "A foto mostra o dono de Bridgeville passeando pelas ruas de sua cidade."
Dono de todas as lojas de Bridgeville, ele seria também o único consumidor. Exigiria, portanto, um tratamento mais que diferenciado: um tratamento privilegiado. Mesmo porque quem fixaria os preços seria ele próprio.
Bridgeville admitiria visitantes, mas só selecionados. Sua mulher poderia visitá-lo uma vez ao mês, desde que se comportasse direitinho, mas o cunhado, um chato, seria detido na entrada da cidade. Onde haveria uma cancela eletrônica controlada por ele.
Um único problema: onde arranjar US$ 775 mil para comprar Bridgeville? Isso não lhe tirava o sono. Um cara tão poderoso quanto ele não se deixaria vencer por um obstáculo tão insignificante.

2. As surpresas de um novo ano

Prepare-se para receber 2003. Folha Equilíbrio Online, 26.dez.2002

Estranha aparência tinha o homem, constatou a adivinha. Usava chapéu, óculos escuros e uma capa, apesar do calor. Mas pagou a consulta adiantado e ela não discriminava ninguém, de modo que perguntou o signo do cliente e começou a fazer as previsões habituais: muito amor, muita sorte etc... O homem não dizia nada; ouvia apenas. Mas lá pelas tantas perguntou:
- E o seu ano? Como será o seu ano?
Ela mirou-o, surpresa: nunca lhe haviam feito uma indagação assim. Mas não se recusou a responder. Disse que 2003 seria muito bom, tão bom ou melhor do que 2002, ano em que tinha ganho muito dinheiro: com a crise, as pessoas ficavam ansiosas, queriam saber do futuro e ela faturava.
- E hoje? Insistiu o homem.- O que vai lhe acontecer hoje?
Agora a coisa estava realmente engraçada. Mas ela foi em frente: disse que iria para casa, trocar de roupa. Depois jantaria com o jovem namorado num restaurante, dançariam... Foi então que viu: o homem lhe apontava um revólver.
Ela entregou a féria do dia, que não era pouca grana. Indignada: você não tem vergonha do que está fazendo, assaltando uma pessoa que só queria lhe ajudar? Ele pensou um pouco.
- Não. Não tenho vergonha. Na verdade, eu é que estou ajudando você. Estou lhe mostrando que, como adivinha, você não é de nada. E estou lhe cobrando pela lição cobrando pouco, até. Agora vou eu fazer uma previsão: no ano que vem você não atenderá ninguém de capa e óculos escuros.
Errado, pensou ela. No ano próximo certamente o assaltante viria em roupas comuns. O homem estava certo: ela estava aprendendo a prever o futuro.


O escritor Moacyr Scliar escreve às segundas-feiras, nesta coluna, um texto de ficção baseado em reportagens publicadas no jornal.


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