|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
MOACYR SCLIAR
Duas histórias de Ano Novo
1. Um sonho para 2003
Cidade da Califórnia vai a venda na
internet. O vilarejo de Bridgeville está sendo oferecido na página de leilão. A oferta mínima é de US$ 775
mil dólares. Folha Online,
26.dez.2002
Este é o sonho da minha vida, pensou ele, quando viu o
anúncio da venda de Bridgeville.
Vilarejo minúsculo -na verdade, umas poucas casas abandonadas- mas não precisava mais do
que isso. Bridgeville seria para ele
como a Pasárgada de Manuel
Bandeira -não, melhor que Pasárgada. Porque em Pasárgada
tudo o que o poeta conseguiria
era ser amigo do rei. Em Bridgeville ele seria quase um rei: seria o
prefeito. E também o presidente
da Câmara de Vereadores. E o
único vereador. Reeleito por
mandatos sem conta, já que ele
seria também o único eleitor.
Seria o dono do único jornal.
Cujos editoriais, naturalmente, só
o elogiariam. O noticiário seria
inteiramente dedicado ao seu cotidiano: "O dono de Bridgeville
acordou sorrindo". "O dono de
Bridgeville acha que o tempo está
ótimo." "A foto mostra o dono de
Bridgeville passeando pelas ruas
de sua cidade."
Dono de todas as lojas de Bridgeville, ele seria também o único
consumidor. Exigiria, portanto,
um tratamento mais que diferenciado: um tratamento privilegiado. Mesmo porque quem fixaria
os preços seria ele próprio.
Bridgeville admitiria visitantes,
mas só selecionados. Sua mulher
poderia visitá-lo uma vez ao mês,
desde que se comportasse direitinho, mas o cunhado, um chato,
seria detido na entrada da cidade. Onde haveria uma cancela
eletrônica controlada por ele.
Um único problema: onde arranjar US$ 775 mil para comprar
Bridgeville? Isso não lhe tirava o
sono. Um cara tão poderoso
quanto ele não se deixaria vencer
por um obstáculo tão insignificante.
2. As surpresas de um novo ano
Prepare-se para receber 2003. Folha Equilíbrio Online, 26.dez.2002
Estranha aparência tinha
o homem, constatou a adivinha. Usava chapéu, óculos escuros e uma capa, apesar do calor.
Mas pagou a consulta adiantado
e ela não discriminava ninguém,
de modo que perguntou o signo
do cliente e começou a fazer as
previsões habituais: muito amor,
muita sorte etc... O homem não
dizia nada; ouvia apenas. Mas lá
pelas tantas perguntou:
- E o seu ano? Como será o seu
ano?
Ela mirou-o, surpresa: nunca
lhe haviam feito uma indagação
assim. Mas não se recusou
a responder. Disse que 2003 seria
muito bom, tão bom ou melhor
do que 2002, ano em que tinha
ganho muito dinheiro: com a crise, as pessoas ficavam ansiosas,
queriam saber do futuro e ela faturava.
- E hoje? Insistiu o homem.- O
que vai lhe acontecer hoje?
Agora a coisa estava realmente
engraçada. Mas ela foi em frente:
disse que iria para casa, trocar de
roupa. Depois jantaria com
o jovem namorado num restaurante, dançariam... Foi então que
viu: o homem lhe apontava um
revólver.
Ela entregou a féria do dia, que
não era pouca grana. Indignada:
você não tem vergonha do que está fazendo, assaltando uma pessoa que só queria lhe ajudar? Ele
pensou um pouco.
- Não. Não tenho vergonha. Na
verdade, eu é que estou ajudando
você. Estou lhe mostrando que,
como adivinha, você não é de nada. E estou lhe cobrando pela lição cobrando pouco, até. Agora
vou eu fazer uma previsão: no
ano que vem você não atenderá
ninguém de capa e óculos escuros.
Errado, pensou ela. No ano próximo certamente o assaltante viria em roupas comuns. O homem
estava certo: ela estava aprendendo a prever o futuro.
O escritor Moacyr Scliar escreve às segundas-feiras, nesta coluna, um texto de
ficção baseado em reportagens publicadas no jornal.
Texto Anterior: Programa vai de Plano Diretor a ajuda a tribos Próximo Texto: Há 50 anos Índice
|