São Paulo, quinta-feira, 30 de dezembro de 2004

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PASQUALE CIPRO NETO

Quantas são as luas de Saturno?

Estava num título jornalístico, publicado na semana passada: "Sonda inicia sua jornada a lua de Saturno". Diga lá, caro leitor: partindo-se do pressuposto de que o redator agiu bem quando não empregou o acento grave (indicador de crase) sobre o "a" de "jornada a lua de Saturno", pode-se concluir que Saturno tem mais de uma lua?
Para começar, não custa lembrar que, em rigor, "crase" não é o nome do acento; é a contração ou a fusão de duas vogais iguais. Em "cor", por exemplo, houve crase, já que, na evolução do latim para o português, "colore" passou a "coor" e daí a "cor". A transformação do grupo "oo" em "o" configura um caso de crase.
Na escola, não se costuma falar desse tipo de crase, ligado à etimologia ou à gramática histórica. Costuma-se falar da fusão da preposição "a" com um segundo "a", que, nas maior parte dos casos, é artigo definido. Em "O homem chegou à Lua em 1969", por exemplo, ocorre crase da preposição "a", regida pelo verbo "chegar", com o artigo "a", determinante do substantivo feminino "Lua", que, no caso, é o nome do único satélite natural da Terra. Na língua de hoje, marca-se esse tipo de crase com o acento grave.
Pois bem, caro leitor, o último exemplo foi intencional, provocativo. Por que em "jornada a lua de Saturno" o "l" de "lua" é minúsculo e o "a" não recebe acento grave, mas em "O homem chegou à Lua em 1969" ocorre exatamente o contrário, isto é, grafa-se "Lua" com inicial maiúscula e o "a" com acento grave?
A questão das iniciais maiúsculas e minúsculas não parece difícil: "Lua", que é o nome do satélite da Terra, passa, por extensão de sentido, a designar o(s) satélite(s) de qualquer planeta, caso em que se grafa com inicial minúscula ("as luas de Júpiter").
A segunda questão é um pouco mais delicada, mas não é nenhum bicho-de-sete-cabeças. Em "Sonda inicia sua jornada a lua de Saturno", o substantivo "jornada" (que, no caso, é sinônimo de "viagem") rege a preposição "a" (jornada a algum lugar). E que lugar é esse? Pois bem, esse lugar não é a lua de Saturno, mas uma das luas desse planeta, que, como se sabe, tem mais de um satélite, ou seja, mais de uma lua.
Imagine que uma nave espacial vá a esse satélite e volte de lá com algum material (areia, pedras ou sabe-se lá o quê). Seria possível encontrar nos jornais um título como este: "Sonda traz rochas de lua de Saturno". Você estranharia o "de" antes de "lua"? Certamente, não -se soubesse que Saturno tem mais de uma lua, ou seja, mais de um satélite. Se Saturno tivesse apenas um satélite, o título certamente seria este: "Sonda traz rochas da lua de Saturno".
Moral da história: em "Sonda inicia sua jornada a lua de Saturno" ocorre exatamente o que se vê em "Sonda traz rochas de lua de Saturno", ou seja, não se emprega artigo definido antes de "lua", fato que funciona como indicador de que as luas são pelo menos duas. Se não há artigo antes de "lua", não pode haver acento grave no "a", que, no caso, não passa de mera preposição.
Convém lembrar que, fora do texto jornalístico, as frases que vimos tenderiam a incorporar o artigo indefinido ("uma", nos dois casos): "...jornada a uma lua (ou "a uma das luas') de Saturno"; "...rochas de uma lua (ou "de uma das luas') de Saturno". É isso.


Pasquale Cipro Neto escreve nesta coluna às quintas-feiras


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