São Paulo, quarta, 30 de dezembro de 1998

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OPINIÃO

Estado, violência e autonomia

MARCO SEGRE
e VOLNEI GARRAFA

Em alguns aspectos, o Estado brasileiro continua medieval. Basta que circunstâncias o coloquem em posição delicada para virem à tona decisões autoritárias e inaceitáveis a esta altura do desenvolvimento da história humana.
No caso da liminar, solicitada pela Procuradoria Geral do Estado, que obriga os médicos do Hospital das Clínicas a ministrar medicamentos aos sequestradores de Abílio Diniz, em greve de fome, parecemos voltar aos tempos da repressão. O governo dita as regras, decidindo o que bem entende sobre os presos, e exige do hospital que cumpra suas decisões.
Sob certa ótica, o episódio lembra os casos de tortura registrados durante a ditadura militar, quando os presos eram submetidos a violência para que confessassem. O "Fayad" de plantão era convocado a intervir, despertando-os, "salvando-lhes a vida", para que mais choques viessem, mais "paus-de-arara", mais, mais...
A posição desse Estado antiquado é cômoda: o juramento hipocrático e o código de ética impõem ao médico a preservação da vida, acima de tudo. Intérpretes conservadores da Constituição e setores mais atrasados da medicina brasileira vêem a situação como se os presos tivessem a obrigação de viver e o médico, a de anular propositalmente os seus direitos. Eles são verdadeiros sujeitos do evento, cidadãos lúcidos, que tentam exercer seu direito de não querer receber alimento ou tratamento.
Anacronicamente, o Código de Ética Médica brasileiro destaca o iminente perigo de vida como situação em que o profissional pode intervir contrariamente à vontade do paciente. Nossas autoridades aproveitam-se desse "aleijão" para exercer a coerção sobre os profissionais de saúde. E ainda falam de "direitos humanos", desde que sua implantação não contrarie seus interesses (e temores).
Com a contribuição da Justiça e dos médicos, o governo deseja violentar, outra vez, a determinação de homens e mulheres que preferem morrer por um ideal. Aliás, esse Estado assemelha-se àquele do poder paternalista preconizado na "República", de Platão, em que o soberano decidia, unilateralmente, o que era melhor para seus súditos, do "morrer" ao "não deixar morrer".
Vida sem autonomia, liberdade e dignidade pouco vale. Isso, pelo menos, os sequestradores de Diniz mostram ao país e ao mundo nestes dias de globalização, tão pobres de coerência e convicções.


Marco Segre, 64, médico, é professor titular de ética médica da Faculdade de Medicina da USP (Universidade de São Paulo) e presidente da Sociedade Brasileira de Bioética.


Volnei Garrafa, 52, é professor titular da Faculdade de Ciências da Saúde da UnB (Universidade de Brasília) e primeiro vice-presidente da Sociedade Brasileira de Bioética.



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