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OPINIÃO
Estado, violência e autonomia
MARCO SEGRE
e VOLNEI GARRAFA
Em alguns aspectos, o Estado
brasileiro continua medieval. Basta que circunstâncias o coloquem
em posição delicada para virem à
tona decisões autoritárias e inaceitáveis a esta altura do desenvolvimento da história humana.
No caso da liminar, solicitada
pela Procuradoria Geral do Estado, que obriga os médicos do Hospital das Clínicas a ministrar medicamentos aos sequestradores de
Abílio Diniz, em greve de fome,
parecemos voltar aos tempos da
repressão. O governo dita as regras, decidindo o que bem entende sobre os presos, e exige do hospital que cumpra suas decisões.
Sob certa ótica, o episódio lembra os casos de tortura registrados
durante a ditadura militar, quando os presos eram submetidos a
violência para que confessassem.
O "Fayad" de plantão era convocado a intervir, despertando-os,
"salvando-lhes a vida", para que
mais choques viessem, mais
"paus-de-arara", mais, mais...
A posição desse Estado antiquado é cômoda: o juramento hipocrático e o código de ética impõem
ao médico a preservação da vida,
acima de tudo. Intérpretes conservadores da Constituição e setores
mais atrasados da medicina brasileira vêem a situação como se os
presos tivessem a obrigação de viver e o médico, a de anular propositalmente os seus direitos. Eles
são verdadeiros sujeitos do evento, cidadãos lúcidos, que tentam
exercer seu direito de não querer
receber alimento ou tratamento.
Anacronicamente, o Código de
Ética Médica brasileiro destaca o
iminente perigo de vida como situação em que o profissional pode
intervir contrariamente à vontade
do paciente. Nossas autoridades
aproveitam-se desse "aleijão"
para exercer a coerção sobre os
profissionais de saúde. E ainda falam de "direitos humanos", desde que sua implantação não contrarie seus interesses (e temores).
Com a contribuição da Justiça e
dos médicos, o governo deseja
violentar, outra vez, a determinação de homens e mulheres que
preferem morrer por um ideal.
Aliás, esse Estado assemelha-se
àquele do poder paternalista preconizado na "República", de Platão, em que o soberano decidia,
unilateralmente, o que era melhor
para seus súditos, do "morrer"
ao "não deixar morrer".
Vida sem autonomia, liberdade
e dignidade pouco vale. Isso, pelo
menos, os sequestradores de Diniz
mostram ao país e ao mundo nestes dias de globalização, tão pobres de coerência e convicções.
Marco Segre, 64, médico, é professor titular de
ética médica da Faculdade de Medicina da USP
(Universidade de São Paulo) e presidente da Sociedade Brasileira de Bioética.
Volnei Garrafa, 52, é professor titular da Faculdade de Ciências da Saúde da UnB (Universidade de Brasília) e primeiro vice-presidente da Sociedade Brasileira de Bioética.
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