|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
PASQUALE CIPRO NETO
"Abasteça 25 litros e ganhe..."
O leitor certamente já viu
em postos de gasolina uma
faixa em que se anuncia um "mimo" para quem abastece o carro
com certo número de litros de
combustível. Nessas faixas, costuma-se ler algo como "Abasteça X
litros e ganhe...". Não raro, depois
de "ganhe" aparece a redundante
palavra "grátis". Neste momento,
por sinal, está "no ar" a publicidade de uma distribuidora de
combustíveis cujo bordão é justamente "Abasteça 25 litros e...".
Pois bem, levada ao pé da letra,
a frase das faixas e do bordão publicitário informa que se abastecem os litros, quando, em tese, o
que se abastece é o automóvel
(com X litros). É óbvio que, em se
tratando de linguagem formal, a
construção cabível é "Abasteça
(seu carro) com 25 litros e...".
Nosso objetivo, no entanto
-como bem sabe o leitor habitual desta coluna-, não é pura e
simplesmente dizer como é e como não é que se faz ou que se deixa de fazer. Nosso intento é entender os fatos da língua, seus
mecanismos, seus processos.
Esse caso de "abastecer" me
lembra o de "extorquir". Na linguagem jornalística, a frase exigida pela norma ("Alguém extorque algo de/a alguém" -"O fiscal
extorquiu dinheiro do/ao comerciante") tem sido reduzida a "Alguém extorque alguém" ("O fiscal
extorquiu o comerciante"), em
que uma pessoa funciona como
complemento direto do verbo. Na
construção formal, o complemento direto de "extorquir" é sempre
a coisa extorquida; a pessoa é
complemento indireto, introduzido por preposição ("a" ou "de").
Pelo menos dois fatores explicam a redução que se verifica com
"abastecer" (e com tantos outros
verbos): 1) a inexorável lei linguística da "economia", pela qual se
encurta o que se pode encurtar (o
próprio caso de "extorquir" funciona como exemplo disso); 2) a
influência da regência de verbos
do mesmo campo semântico (no
caso de "extorquir", pode-se citar
a influência de "coagir", "ameaçar", "constranger", "forçar", com
os quais se usa pessoa como complemento direto -"coagir/ameaçar/constranger/forçar alguém").
Um caso que também deve ser
citado é o do verbo "comunicar",
cuja construção padrão é "Alguém comunica algo a alguém",
na voz ativa, ou "Algo é comunicado a alguém", na voz passiva.
Como se vê, na língua padrão o
que se comunica é a coisa, o fato,
e não a pessoa. São cada vez mais
comuns, no entanto, construções
como "Alguém comunica alguém
de algo" ("O delegado comunicou
o juiz do ocorrido"), na voz ativa,
e "Alguém é comunicado de algo
por alguém" ("O juiz foi comunicado do ocorrido pelo delegado").
O que explica esse uso frequente
de "comunicar"? Certamente, a
influência de sinônimos, entre os
quais se destaca "informar", que
na língua padrão aparece com a
construção "Alguém informa alguém de algo" (ou "Alguém informa algo a alguém").
Bem, a esta altura, compreendidos os mecanismos que levam os
falantes a empregar formas como
"Abasteça 25 litros", "O fiscal extorquiu o comerciante", "O secretário comunicou o governador",
"O governador foi comunicado
do ocorrido", cumpre dizer que,
embora comuns em certos registros do idioma, essas construções
não encontram abrigo nas variedades formais da língua. É isso.
Pasquale Cipro Neto escreve nesta coluna às quintas-feiras.
E-mail - inculta@uol.com.br
Texto Anterior: Camelôs dizem que terão reforço do Brás e da Sé hoje Próximo Texto: Trânsito: Obra de acesso fecha pista em Artur Alvim Índice
|