UOL


São Paulo, quinta-feira, 31 de julho de 2003

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

PASQUALE CIPRO NETO

"Abasteça 25 litros e ganhe..."

O leitor certamente já viu em postos de gasolina uma faixa em que se anuncia um "mimo" para quem abastece o carro com certo número de litros de combustível. Nessas faixas, costuma-se ler algo como "Abasteça X litros e ganhe...". Não raro, depois de "ganhe" aparece a redundante palavra "grátis". Neste momento, por sinal, está "no ar" a publicidade de uma distribuidora de combustíveis cujo bordão é justamente "Abasteça 25 litros e...".
Pois bem, levada ao pé da letra, a frase das faixas e do bordão publicitário informa que se abastecem os litros, quando, em tese, o que se abastece é o automóvel (com X litros). É óbvio que, em se tratando de linguagem formal, a construção cabível é "Abasteça (seu carro) com 25 litros e...".
Nosso objetivo, no entanto -como bem sabe o leitor habitual desta coluna-, não é pura e simplesmente dizer como é e como não é que se faz ou que se deixa de fazer. Nosso intento é entender os fatos da língua, seus mecanismos, seus processos.
Esse caso de "abastecer" me lembra o de "extorquir". Na linguagem jornalística, a frase exigida pela norma ("Alguém extorque algo de/a alguém" -"O fiscal extorquiu dinheiro do/ao comerciante") tem sido reduzida a "Alguém extorque alguém" ("O fiscal extorquiu o comerciante"), em que uma pessoa funciona como complemento direto do verbo. Na construção formal, o complemento direto de "extorquir" é sempre a coisa extorquida; a pessoa é complemento indireto, introduzido por preposição ("a" ou "de").
Pelo menos dois fatores explicam a redução que se verifica com "abastecer" (e com tantos outros verbos): 1) a inexorável lei linguística da "economia", pela qual se encurta o que se pode encurtar (o próprio caso de "extorquir" funciona como exemplo disso); 2) a influência da regência de verbos do mesmo campo semântico (no caso de "extorquir", pode-se citar a influência de "coagir", "ameaçar", "constranger", "forçar", com os quais se usa pessoa como complemento direto -"coagir/ameaçar/constranger/forçar alguém").
Um caso que também deve ser citado é o do verbo "comunicar", cuja construção padrão é "Alguém comunica algo a alguém", na voz ativa, ou "Algo é comunicado a alguém", na voz passiva.
Como se vê, na língua padrão o que se comunica é a coisa, o fato, e não a pessoa. São cada vez mais comuns, no entanto, construções como "Alguém comunica alguém de algo" ("O delegado comunicou o juiz do ocorrido"), na voz ativa, e "Alguém é comunicado de algo por alguém" ("O juiz foi comunicado do ocorrido pelo delegado").
O que explica esse uso frequente de "comunicar"? Certamente, a influência de sinônimos, entre os quais se destaca "informar", que na língua padrão aparece com a construção "Alguém informa alguém de algo" (ou "Alguém informa algo a alguém").
Bem, a esta altura, compreendidos os mecanismos que levam os falantes a empregar formas como "Abasteça 25 litros", "O fiscal extorquiu o comerciante", "O secretário comunicou o governador", "O governador foi comunicado do ocorrido", cumpre dizer que, embora comuns em certos registros do idioma, essas construções não encontram abrigo nas variedades formais da língua. É isso.


Pasquale Cipro Neto escreve nesta coluna às quintas-feiras.
E-mail - inculta@uol.com.br


Texto Anterior: Camelôs dizem que terão reforço do Brás e da Sé hoje
Próximo Texto: Trânsito: Obra de acesso fecha pista em Artur Alvim
Índice

UOL
Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.