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menos rigor
Aplicar a lei contra o caos nos presídios
DORA CAVALCANTI CORDANI
LUCIANA ZAFFALON CARDOSO
ESPECIAL PARA A FOLHA
A
SUCESSÃO de acontecimentos trágicos,
há muito anunciada
por quem acompanha o sistema penitenciário paulista,
tem tornado difícil manter a
racionalidade do debate sobre o tema. As contradições
de um sistema que concentra
quase 50% da população prisional do país se explicitaram violentamente em maio
e voltam agora em proporções que não nos permitem
passar um dia sequer sem repensar os sistemas de segurança pública.
Sobram vítimas: policiais,
civis, agentes penitenciários,
presos, "suspeitos" sem
identificação. Heróis inexistem. Todos ameaçados e ao
mesmo tempo incapazes de
atacar o problema.
Todavia, o perfil dos presos do Estado de São Paulo
indica a possibilidade de mudança na escalada do problema sem a adoção de fórmulas
mágicas ou alterações legislativas. Segundo o Censo Penitenciário, dos presos já julgados, 47% foram condenados por roubo. Dentre os que
aguardam julgamento, 29%
são processados pelo delito.
Pesquisa do Instituto de
Defesa do Direito de Defesa
(IDDD) detectou que, de
1999 a 2000, 95% dos processos de roubo resultaram
em condenação definitiva
-77% com pena em regime
fechado. E mais, 78% dos
condenados por roubo são
primários, sendo que 53%
deles têm entre 18 e 24 anos.
O objetivo foi justamente
estudar a motivação das decisões judiciais na fixação
quase exclusiva do regime
inicial fechado para o condenado por roubo, sobretudo
para o réu primário. Tal imposição está em dissonância
com o Código Penal. O regime de cumprimento de pena
só passa a ser obrigatoriamente fechado para condenações superiores a oito anos
-nos casos de roubo qualificado, a pena padrão é de cinco anos e quatro meses.
Entretanto, as sentenças
costumam impor regime
mais gravoso do que determina a lei, ancoradas em argumentos palatáveis para o
senso comum, mas nem por
isso revestidos de legalidade.
Em 2003, o Supremo Tribunal Federal editou duas
súmulas que vedam a fixação
de regime mais severo do que
determina a lei, quando lastreadas em considerações
sobre a gravidade em abstrato do delito e à míngua de
fundamentação idônea. Na
mesma linha, a jurisprudência do Superior Tribunal de
Justiça proclama a ilegalidade do regime fixado em tais
condenações por roubo, determinando que seja fixado o
regime inicial semi-aberto.
Mas são poucos os casos de
roubo que atingem tribunais
superiores. O pleno acesso à
Justiça continua a ser uma
"regalia" reservada àqueles
que têm condições de bancar
a defesa. Assim, os números
da Secretaria da Administração Penitenciária ajudam a
explicar as aterrorizantes cenas transmitidas nas TVs.
Daí a obrigação de advogados, juízes, defensores públicos e promotores de refletir
sobre o tema. O caos do sistema penitenciário decorre da
falta de política criminal definida às claras, norteadas
por critérios racionais.
Às escondidas, a política
criminal em curso conduz
inexoravelmente à superpopulação carcerária, à proliferação de facções poderosas e
bem estruturadas. A cada
sentença que determina a inclusão de mais um preso no
sistema, outro potencial
"soldado" do PCC apaga do
seu futuro a mais remota
chance de ressocialização.
Sem sermos piegas, nenhum
Estado pode se dar ao luxo de
desistir de um jovem cidadão, principalmente no primeiro erro.
O momento é mais que
propício a uma mudança cultural de fundo. É fundamental ter coragem de reconhecer a relação de causa e efeito
entre condenações excessivamente severas e a deterioração do sistema punitivo.
Conclamamos à Corte de
Justiça a inovar naquilo que
parece sem conserto, diligenciando por aplicar a lei
onde ela parece esquecida.
DORA CAVALCANTI CORDANI , advogada
criminalista, preside o Instituto de Defesa
do Direito de Defesa (IDDD) e é conselheira
do Ilanud (órgão da ONU sobre delitos e tratamento do delinqüente); LUCIANA ZAFFALON CARDOSO , coordenadora-geral do
IDDD, é educadora social do URB-AL, projeto
de cooperação entre cidades da União Européia e da América Latina
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