São Paulo, segunda-feira, 31 de julho de 2006

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menos rigor

Aplicar a lei contra o caos nos presídios

DORA CAVALCANTI CORDANI
LUCIANA ZAFFALON CARDOSO

ESPECIAL PARA A FOLHA

A SUCESSÃO de acontecimentos trágicos, há muito anunciada por quem acompanha o sistema penitenciário paulista, tem tornado difícil manter a racionalidade do debate sobre o tema. As contradições de um sistema que concentra quase 50% da população prisional do país se explicitaram violentamente em maio e voltam agora em proporções que não nos permitem passar um dia sequer sem repensar os sistemas de segurança pública.
Sobram vítimas: policiais, civis, agentes penitenciários, presos, "suspeitos" sem identificação. Heróis inexistem. Todos ameaçados e ao mesmo tempo incapazes de atacar o problema.
Todavia, o perfil dos presos do Estado de São Paulo indica a possibilidade de mudança na escalada do problema sem a adoção de fórmulas mágicas ou alterações legislativas. Segundo o Censo Penitenciário, dos presos já julgados, 47% foram condenados por roubo. Dentre os que aguardam julgamento, 29% são processados pelo delito.
Pesquisa do Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD) detectou que, de 1999 a 2000, 95% dos processos de roubo resultaram em condenação definitiva -77% com pena em regime fechado. E mais, 78% dos condenados por roubo são primários, sendo que 53% deles têm entre 18 e 24 anos.
O objetivo foi justamente estudar a motivação das decisões judiciais na fixação quase exclusiva do regime inicial fechado para o condenado por roubo, sobretudo para o réu primário. Tal imposição está em dissonância com o Código Penal. O regime de cumprimento de pena só passa a ser obrigatoriamente fechado para condenações superiores a oito anos -nos casos de roubo qualificado, a pena padrão é de cinco anos e quatro meses.
Entretanto, as sentenças costumam impor regime mais gravoso do que determina a lei, ancoradas em argumentos palatáveis para o senso comum, mas nem por isso revestidos de legalidade.
Em 2003, o Supremo Tribunal Federal editou duas súmulas que vedam a fixação de regime mais severo do que determina a lei, quando lastreadas em considerações sobre a gravidade em abstrato do delito e à míngua de fundamentação idônea. Na mesma linha, a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça proclama a ilegalidade do regime fixado em tais condenações por roubo, determinando que seja fixado o regime inicial semi-aberto.
Mas são poucos os casos de roubo que atingem tribunais superiores. O pleno acesso à Justiça continua a ser uma "regalia" reservada àqueles que têm condições de bancar a defesa. Assim, os números da Secretaria da Administração Penitenciária ajudam a explicar as aterrorizantes cenas transmitidas nas TVs.
Daí a obrigação de advogados, juízes, defensores públicos e promotores de refletir sobre o tema. O caos do sistema penitenciário decorre da falta de política criminal definida às claras, norteadas por critérios racionais.
Às escondidas, a política criminal em curso conduz inexoravelmente à superpopulação carcerária, à proliferação de facções poderosas e bem estruturadas. A cada sentença que determina a inclusão de mais um preso no sistema, outro potencial "soldado" do PCC apaga do seu futuro a mais remota chance de ressocialização. Sem sermos piegas, nenhum Estado pode se dar ao luxo de desistir de um jovem cidadão, principalmente no primeiro erro.
O momento é mais que propício a uma mudança cultural de fundo. É fundamental ter coragem de reconhecer a relação de causa e efeito entre condenações excessivamente severas e a deterioração do sistema punitivo.
Conclamamos à Corte de Justiça a inovar naquilo que parece sem conserto, diligenciando por aplicar a lei onde ela parece esquecida.


DORA CAVALCANTI CORDANI , advogada criminalista, preside o Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD) e é conselheira do Ilanud (órgão da ONU sobre delitos e tratamento do delinqüente); LUCIANA ZAFFALON CARDOSO , coordenadora-geral do IDDD, é educadora social do URB-AL, projeto de cooperação entre cidades da União Européia e da América Latina

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